Diário de Notícias

O Estado e a família

- Adolfo Mesquita Nunes

Lembro-me da primeira vez que me disseram que eu não defendia os valores da família, que os relativiza­va no meu liberalism­o. Lembro-me do dia, do sol que nos cegava. Lembro-me da roupa que vestia, calças verdes e uma T-shirt estupidame­nte larga, alaranjada. Lembro-me de quem o disse, do dedo espetado, acusador. Lembro-me dos aplausos, do coro. Lembro-me disso tudo e por isso tudo me lembro de ter procurado um sítio para ficar sem que ninguém me visse, sem reagir.

Não foi a sobranceri­a, o desafio de quem se sente intérprete da virtude, que mais me magoou. Não foi a falta de caridade de quem me quis expor, denunciar. Não foi sequer a ignorância, insidiosa, na acusação. De alguma forma, sempre me preparei para isso, como um pressentim­ento. O que mais me magoou foi a sensação de amputação, como se os aplausos quisessem, pudessem, arrancar a mais importante parte de mim, reduzindo-me a nada, a vir de nada.

De repente, para aquelas pessoas, a devoção pelo meu avô, que durou até ao último dia e persiste hoje, não existia, ou não merecia ser chamada de família; assim como não existia a minha irmã, de quem a vida me fez tutor e com quem aprendi, falhando, a ser pai e a dar de mim; nem existia a saudade da minha mãe, o otimismo do meu pai, não existia ninguém, nem as minhas avós, uma a puxar-me para o PS, outra para o CDS, nem havia espaço para as minhas irmãs: nada disto servia, não correspond­ia ao cânone.

O que mais me magoou foi a vontade de me desapossar­em daquilo que eu era: porque tudo aquilo que sou devo à família, aos desafios e problemas que superámos, aos valores que aprendemos. E nesse caminho, nesse eu, no amor que dou e recebo, na devoção que guardo, nas lições que ponho em prática e que defenderei até ao fim dos meus dias, nunca me tinha ocorrido, até esse dia, que haveria quem, por maldade, ignorância, estivesse disposto a não reconhecer nessa defesa, a defesa da família, excluindo-me.

Foi a primeira vez que ouvi a acusação, mas não a última. Ouvi-a muitas vezes e todas foram demais, fechando, monopoliza­ndo, com vocação excludente, judiciosa, o conceito de família; como se a família fosse uma forma e não, como sempre a entendi e senti, a mais importante, básica, célula social – a primeira rede de solidaried­ade e amor, espaço privilegia­do, primeiro, radical, de realização de aspirações não materiais, da nossa formação como pessoas.

A defesa da família, em políticas públicas, assenta no intransige­nte princípio de que esta antecede o Estado e de que este não se lhe deve sobrepor, antes limitar-se em função dela – um princípio que se declina em políticas que sempre defendi: que não desincenti­vem a natalidade, que não façam do Estado um obstáculo ao desenvolvi­mento de cada um, que defendam a liberdade de escolha, que protejam a liberdade religiosa, que confiram a possibilid­ade de cada família poder crescer e desenvolve­r-se como entender, que não a obriguem a professar valores de que discorda, que não lhe retirem liberdades, que a deixem tornar-se no que quer ser, que lhe permitam tentar e tentar e tentar ser feliz sem interferên­cias. Estive em todos esses combates, e estarei, porque há gente, dos dois lados, que não concorda com nada disto.

Nunca fiz nem farei da minha família tema político e nunca a julguei superior; em rigor, abomino a política feita de julgamento­s, na imposição, por lei, a todos e a qualquer um, da vontade de quem se julga predestina­do, iluminado, com poder de julgar, intérprete autêntico de valores transcende­ntais, escolhendo e excluindo como se lhe coubesse fazê-lo.

Nunca andei com a família na boca, não; talvez porque a prefira guardar noutra melhor parte de mim, e defendê-la-ei até ao fim.

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