... e sigam o exemplo
O psicólogo e antropólogo americano Michael Tomasello publicou em 2016 A Natural History of Human Morality, um livro em que analisa como a simpatia natural pelos outros, que partilhamos com outras espécies, nos homens evoluiu para uma moral de justiça.
Paremos. E se outra realidade – outra, boa, moral, decente, enfim, diferente da que nos é apresentada como única – também existir? Porque há de aquele encontro, Trump e Putin em Helsínquia, passar por norma na relação entre os homens? O desprezo pelo outro, seja na versão exposta e grosseira do americano seja na secreta e policial variante russa, versões praticadas, uma pelo Twitter, outra pela Cambridge Analytica, ambas manipuladoras, expressadas com a cara única tão bem retratada em capa recente da revista Time, Vladimir Trump, Donald Putin, farinha do mesmo saco egoísta e imoral... Mas se a realidade dos homens também for o cuidado pelo outro?
Um russo, também ele brutal, um dia fez uma pergunta que só por si indiciava uma convicção
A filósofa judia Hannah Arendt cunhou a “banalidade do mal”, falando do nazismo. Porque não falar também da banalidade do bem do nosso cônsul em Bordéus?
única para a sociedade humana: “Quantas divisões de tanques tem o Vaticano?” Para o ditador comunista José Estaline, o indivíduo, sendo um pecado, nada tinha mais valor e merecia mais atenção do que a força. E um tanque, pesado e com lagartas todo-o-terreno, era o melhor profeta dessa força: arrasava os indivíduos, fazia deles uma pasta informe. Então, paremos e falemos. E ouçamos os casos – costumam vir nos noticiários mas passam mais ou menos despercebidos e quase nunca dados como exemplares – de compaixão, caridade, cooperação, empatia, fraternidade, solidariedade, entreajuda...
E se o altruísmo, a vontade de viver para o outro, não for mera ideia, mas noção profunda, tão indissociável da história milenar dos homens como as contrárias, o egoísmo e o puro interesse individual? Robert Wilson, o popular escritor de policiais que vive algures numa quinta alentejana perto do Redondo, diz em entrevista a João Céu e Silva (nesta edição do DN, págs. 40/42) porque escolheu Aristides Sousa Mendes para um dos protagonistas do seu próximo romance: “Fiquei fascinado por um burocrata que é também um herói por carimbar passaportes.” A filósofa judia Hannah Arendt cunhou a noção da “banalidade do mal”, falando de acontecimentos contemporâneos do cônsul português de Bordéus. Então, porque não falar também da banalidade do bem?
O que levou um banal funcionário, cumpridor, exceto nos pequenos pecados, a desbaratar a sua vida e dos seus (não é figura de retórica, a família roçou a miséria por causa do próprio Sousa Mendes) e desatar a assinar documentos que salvavam os outros e o perdiam a ele? E nem foi ato irrefletido: quando lhe fecharam o consulado em Bordéus, no dia seguinte ele marchou para a fronteira de Hendaia para continuar o frenesim das assinaturas... O mistério que levou a esse ato, estudam agora as neurociências e a antropologia, bebe na origem da nossa espécie. As qualidades sublimes foram-nos impregnadas e aprimoradas há milénios e levam-nos a esses impulsos inconscientes... e morais. O psicólogo e antropólogo americano Michael Tomasello publicou em 2016 A Natural History of Human Morality, um livro em que analisa como a simpatia natural pelos outros, que partilhamos com outras espécies, nos homens evoluiu para uma moral de justiça.
Os passaportes salvadores do cônsul português e os comboios para Treblinka viveram a mesma época. O encontro de Trump e Putin viveu os mesmos dias da atenção mundial para com os 12 miúdos tailandeses e o seu treinador, presos numa gruta. Além do vendaval informativo, houve interpretações e análises (e até a tal foto da Time) para explicar o primeiro caso. No segundo, apesar também de uma mediatização enorme, ficou-se pelos factos. Como se a compaixão mundial que o caso causou não merecesse também reflexão. Paremos. Compaixão é uma disposição para sentir o sofrimento do(s) outro(s), acompanhada ou não de uma ação para o resolver (o mergulhador que morreu para salvar as crianças levou a compaixão ao extremo).
Provavelmente o que o caso tailandês mais nos deu a aprender foi a entreajuda dos protagonistas na gruta. Afinal, a nossa compaixão, porque nada nos exigiu em troca, pode ter sido mero gosto por frequentarmos (vermos na TV e nas redes sociais) acontecimentos famosos. Outra coisa foi na entreajuda entre os tailandeses da gruta, os jovens e os professores, e as autoridades que os salvaram.
As teorias de Herbert Spencer, sociólogo britânico do séc. XIX, defendiam a existência de um darwinismo social – segundo elas, teria sido a seleção dos mais aptos que deu origem ao progresso humano, tal como acontecera na evolução das espécies. O próprio Darwin combateu essa ideia, considerando que o altruísmo foi um dos fundamentos da sociedade humana. Ora, o que se viu como decisivo na solução do caso da gruta foram as ideias de Pierre Kropotkine, anarquista russo, que ao contrário de Spencer defendeu a cooperação como a alavanca do nosso progresso. E da salvação dos garotos tailandeses poderíamos acrescentar se nos acontecesse parar e pensar as notícias.
Esta semana, uma garota, enfim, já 21 anos, mas com bochechas que enrubescem quando ela se comove e olhos que ficam marejados quando ela luta, a sueca Elin Ersson, apanhou um avião para que ele não levantasse. Para isso acontecer, levantou-se ela. Com um passageiro de pé, os aviões não descolam, e era isso que queria Elin, porque o avião, que partia de Gotemburgo, Suécia, levava um afegão expulso para a sua terra. O Afeganistão não é um bom país para receber de volta os seus cidadãos que pedem asilo no estrangeiro e Elin receava a morte do afegão. Que ela nem conhecia.
Interessará pouco, para aqui, o caso político – a demanda de asilo na Europa e a capacidade de esta receber todos esses pedidos – mas que maravilhoso caso foi este de cuidado, o de gostar de outro de forma desinteressada, de desejo de que os outros sejam libertados do seu sofrimento e de felicidade própria por a dar a outro. Mais uma vez, a banalidade do ato. Ficar de pé num corredor de avião e afirmar: “Ele vai morrer e eu não quero.” E ela não podia não querer, como se um misterioso apelo genético, que nos fez chegar ao homem e mulher que somos, a impedisse de fazer outra coisa. Paremos e falemos.
Há a ocitocina, molécula que empurra os mamíferos para a sociabilidade e desenvolve a nossa empatia pelos outros. Há a vontade natural – não ensinada pelos adultos – que leva as crianças de 2 anos a oferecer a sua ajuda sem que lha peçam. Há uma sueca de 21 anos que se levanta, porque sim, num avião. Há tanta coisa para pararmos e falar.