Diário de Notícias

... e reajam

- Lina Santos TEXTO

Manuel não tem nenhuma dificuldad­e em dizer qual foi o melhor momento desde que, a 9 de janeiro, chegou ao seu T1. “Meter a chave à porta.” Esteve onze anos na rua. Ao frio, ao vento, à chuva. “Sou capaz de passar um dia inteiro de cócoras”, diz, agachando-se. Era assim, com um saco na cabeça, que se protegia nos dias molhados. “Sou capaz de dormir assim.”

Manuel é uma das 35 pessoas que saíram da rua graças ao projeto É Uma Casa. “Se a necessidad­e da pessoa é ter uma casa, começamos por aí.” É assim que tudo começa na vida daqueles que a Crescer resgata e é assim que Américo Nave descreve o trabalho que fazem na associação. É um plano que contraria tudo o que vem sendo feito nesta área da intervençã­o social. Em vez de começar pela identifica­ção, pelos cuidados de saúde, pelo emprego... este projeto começa por encontrar uma casa para cada pessoa. “É um programa muito pragmático”, diz Américo.

A iniciativa é apoiada pela Câmara Municipal de Lisboa (CML) e foi a vencedora do Prémio Gulbenkian 2018 na área da coesão. “Quanto mais desorganiz­adas estão as pessoas, mais indicação têm para este projeto.” O que Américo diz ser prova do êxito deste projeto é que resultou onde outros falharam. “Os casos crónicos não voltam à situação de sem-abrigo.”

O projeto começou a desenhar-se em 2010, quando António Costa, então presidente da CML, se mudou para o Intendente e criou um gabinete que chamou todas as organizaçõ­es que intervinha­m naquela zona. “Éramos 30”, recorda Américo Nave. A Crescer, que desde 2002 trabalha com pessoas sem abrigo, era uma delas.

Foi feito um “diagnóstic­o” dos problemas da zona e nasceu o Programa Comunitári­o da Mouraria (PCM). Percebeu-se logo aí que havia uma série de pessoas em situação crónica de sem-abrigo e que “não havia resposta”. Encontrara­m pessoas que viviam na rua há dez anos, como Manuel. Ou mais. “O primeiro do nosso projeto estava na rua há vinte anos. Não saía do mesmo sítio. Fazia as necessidad­es, comia, no mesmo sítio”, diz Américo Nave, sem meias-palavras.

A presença de António Costa no Intendente deu visibilida­de aos casos e apoio. A Crescer apresentou o projeto Housing First, que nasceu nos EUA. Em Portugal foi batizado de É Uma Casa. Começaram com sete casas. Sete casas para sete pessoas. E já não tinham de ser na Mouraria. Graça, Avenida de Roma, Santa Catarina, Alcântara...

Desde essa altura, é a associação que aluga as casas, T0 ou T1. “Depois, as pessoas podem ir visitar a casa, recusá-la, dizer que não querem aquela, há essa escolha.” A especulaçã­o imobiliári­a também aqui chegou, levando os números para o limite do plafond inicialmen­te pensado. Américo diz que contam com o poder negocial de quem paga um ano à cabeça, mas admite as dificuldad­es. “Torna o projeto mais caro.” A câmara é o principal investidor, com 175 mil euros por ano de um total de 230 mil euros. “Temos outros, como a Fundação Montepio, Fundação PT...”.

Em todo o caso, o custo do projeto é menor do que alguns centros de acolhiment­o. “O projeto torna-se caro, porque é uma casa para cada pessoa, mas como não tem staff 24 horas por dia...” A maior fatia de cada projeto destes costumam ser os recursos humanos.

Na maioria dos casos, o projeto É Uma Casa ajuda pessoas sozinhas, mas têm dois casais, um deles com um bebé. Preferem não dar a cara nem o nome, porque “há muito preconceit­o”. Viviam numa casa precária, subalugada, cortaram-lhes água e luz, em vésperas de terem o filho. Sem apoio das famílias, quando o bebé nasceu andaram “de pensão em pensão”, porque “ninguém aceita bebés”, diz ele. “Foi a entrada mais rápida que a Crescer fez”, diz Joana Lobo, assistente social. A média é de três meses, diz Américo Nave. “Às vezes, há desconfian­ça. Desconfiam se vamos tirar órgãos! Já houve!”

O casal chegou em novembro, calcula a mãe do bebé, um rapaz de 9 meses que já gosta de subir sozinho para o sofá da sala. O pai, carpinteir­o, passou anos a trabalhar seis meses, viajar outros seis, foi okupa, viveu em Berlim. Estão juntos há seis anos e foi num processo de partilhas que ela se viu sem a casa onde viviam.

“Não é preciso que falhe muito para que as pessoas fiquem sem casa”, alerta Joana Lobo. “É a pobreza a grande causa” de viver na rua, alerta Américo Nave. Mais do que o

Associação Crescer ganhou o prémio Gulbenkian 2018 com este projeto de dar casas a sem-abrigo. Tirou 35 pessoas da rua.

álcool, as doenças mentais ou os consumos de substância­s psicoativa­s. Mas podem somar-se, como aconteceu com Manuel.

“Era mais fácil arranjar droga do que comer”, diz ele. Foi assim essa mais de uma década que Manuel – nome fictício – viveu, na rua, num bairro da Alta de Lisboa. “Levantava-me para ir consumir, só assim enganava a fome e o frio.” Manuel conta a sua história sentado no seu cadeirão, na sala da sua casa, num bairro de Lisboa. Fala de uma das grandes conquistas: quando tem sede levanta-se, abre a torneira e bebe um copo de água. “Fogo, eu acordava de noite, sentia sede e não tinha água”.

Homem de poucas falas, conta, sem hesitações, como aos 37 anos, dois anos depois de perder a mãe, acabou na rua, após um processo de partilhas e desentendi­mentos com um dos quatro irmãos, o mesmo que o agredia aos 11 anos, a mesma idade em que começou a consumir drogas como heroína e cocaína. “Era para não sentir o cinto do meu irmão.”

Viveu numa ruína do bairro onde cresceu e depois na mata. Chegou a viver em Loures, esteve preso por arrombamen­to e teve problemas de saúde. E voltou à rua. Sem casa, trabalho ou dinheiro, continuava mesmo assim a consumir. Desde que entrou na casa que a Crescer lhe propôs, diz que consumiu “duas vezes”.

Manuel era acompanhad­o pelas equipas de rua da Crescer, noutro projeto, e o seu caso estava sinalizado. Falam desses tempos de rua como um passado longínquo. A assistente social lembra-se dele sempre cioso das suas coisas. Se as deixasse sozinhas, ficava sem elas. Quando lhe propuseram uma casa, aceitou de imediato, o que não é sempre o caso, segundo Américo Nave. Às vezes, há desconfian­ça. “Uma das pessoas começou por dormir junto à porta, depois na sala, só depois no quarto e na cama”, relata. Outra não sabia usar o WC.

“Quando nós pensamos o que é esta pessoa encontrar emprego...”, diz Américo Nave, pondo os casos em perspetiva. “O que é esta pessoa, passados dois anos, apanhar um autocarro para ir às consultas de saúde. “Esta pessoa quando saía da casa já não voltava. Nós íamos todos os dias buscá-lo.” As conquistas podem ser essas: apanhar transporte­s públicos, fazer uma sandes, cuidar de uma casa. As equipas ensinam, não fazem. São os que vivem nas casas que se ocupam de tudo, incluindo a limpeza. “Quando essa parte começa a correr mal, já sei que se passa qualquer coisa”, diz Joana Lobo.

Receber as equipas da Crescer é uma das condições para se manter neste projeto. A outra única regra é contribuir com 30% para a casa quando têm rendimento­s. E, apesar das dificuldad­es, há pessoas nesta fase.

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