A afirmação da coerência
Aafirmação da coerência é como um atrevimento, uma provocação, uma espécie de negação da contingência do humano. De alguma forma, a afirmação da coerência, a sua exibição enquanto virtude, assemelha-se à afirmação da santidade, porque uma e outra, coerência e santidade, participam da condição de um outro mundo, de uma realidade inatingível, espécie de modelo proposto à adoração e admiração.
Claro que somos capazes de gestos coerentes, uma linha direta, imediata, perfeita, unindo sequencialmente todas as razões que a razão em nós tolera, assim como somos capazes de gestos de santidade, sem mácula, sem pecado. Mas esses gestos são sempre uma aproximação, uma tentativa, uma circunstância, sempre insuficiente para uma condição total, integral.
De tão valorizada, talvez não nos seja fácil aceitar a coerência como estranha à condição humana, mas se estivermos atentos ao que dizemos e pensamos, à forma como nos relacionamos e nos vemos, e se soubermos fazer o cotejo entre o ontem e o hoje, percebemos o quanto tergiversamos, mudamos de caminho, paramos nas bermas. Haverá com certeza constâncias, como o amor, a amizade, mas até a forma como as vivemos e julgamos obedece mais à emoção, à fluidez, do que a uma sequência lógica, ordenada, matemática. E há seguramente valores que perseguimos, nossos, prioritários, mas também aí o campo da sua concretização vai permitindo com o tempo uma variação, um espaço para a mudança, para a contradição, revisão. Não somos coerentes não, como não somos santos: somos humanos, e o máximo que podemos é tentar.
Nesse sentido, a afirmação da coerência acaba sempre por se fazer através da arrogância, por presumir uma espécie de superioridade moral, uma elevação face ao humano; sobretudo se for por ela, ou através dela, que afirmamos a nossa diferença perante os restantes, se quisermos para nós o monopólio, o património, de algo tão inatingível quanto a coerência profunda, absoluta, limpa, intransigente. Não é tanto a natural vontade de alinhar pensamento e ação, de respeitar uma sequência lógica, mas antes a exibição, a afirmação, de algo que não possuímos, a que apenas podemos aspirar.
Ainda assim, a coerência é das mais aclamadas e esperadas virtudes em política, no que é um convite à exibição dessa superioridade, dessa arrogância, de certa forma transformando a coerência em automatismo, cinismo e já não tanto em virtude ou verdade, porque ela surge precisamente como instrumento moral de afirmação e não como falível tentativa de atuação.
Não se trata aqui de defender o oportunismo, a mudança instrumental de opiniões e posições, que existe muito e não deveria, ou de fazer um convite à aleatoriedade, à desconformidade entre o que se pensa e o que se diz. Trata-se antes de evidenciar a naturalíssima disposição de adaptação à realidade, que implica mudança constante e provoca contradições, retificações, voltas atrás; de reconhecer que a nossa existência se confunde mais com o erro e o desacerto do que aquilo que gostamos de pensar. De outra maneira: trata-se de alertar para a fragilidade em que sempre se encontram os que fazem da coerência um ativo moral, derradeiro, porque é inevitável o momento da contradição, do confronto com a condição humana, e o julgamento que dele e da sua contradição se fará depende mais da arrogância com que se apresentou do que da humana contradição que o denunciou.