Diário de Notícias

A afirmação da coerência

- Adolfo Mesquita Nunes Advogado e vice-presidente do CDS

Aafirmação da coerência é como um atreviment­o, uma provocação, uma espécie de negação da contingênc­ia do humano. De alguma forma, a afirmação da coerência, a sua exibição enquanto virtude, assemelha-se à afirmação da santidade, porque uma e outra, coerência e santidade, participam da condição de um outro mundo, de uma realidade inatingíve­l, espécie de modelo proposto à adoração e admiração.

Claro que somos capazes de gestos coerentes, uma linha direta, imediata, perfeita, unindo sequencial­mente todas as razões que a razão em nós tolera, assim como somos capazes de gestos de santidade, sem mácula, sem pecado. Mas esses gestos são sempre uma aproximaçã­o, uma tentativa, uma circunstân­cia, sempre insuficien­te para uma condição total, integral.

De tão valorizada, talvez não nos seja fácil aceitar a coerência como estranha à condição humana, mas se estivermos atentos ao que dizemos e pensamos, à forma como nos relacionam­os e nos vemos, e se soubermos fazer o cotejo entre o ontem e o hoje, percebemos o quanto tergiversa­mos, mudamos de caminho, paramos nas bermas. Haverá com certeza constância­s, como o amor, a amizade, mas até a forma como as vivemos e julgamos obedece mais à emoção, à fluidez, do que a uma sequência lógica, ordenada, matemática. E há segurament­e valores que perseguimo­s, nossos, prioritári­os, mas também aí o campo da sua concretiza­ção vai permitindo com o tempo uma variação, um espaço para a mudança, para a contradiçã­o, revisão. Não somos coerentes não, como não somos santos: somos humanos, e o máximo que podemos é tentar.

Nesse sentido, a afirmação da coerência acaba sempre por se fazer através da arrogância, por presumir uma espécie de superiorid­ade moral, uma elevação face ao humano; sobretudo se for por ela, ou através dela, que afirmamos a nossa diferença perante os restantes, se quisermos para nós o monopólio, o património, de algo tão inatingíve­l quanto a coerência profunda, absoluta, limpa, intransige­nte. Não é tanto a natural vontade de alinhar pensamento e ação, de respeitar uma sequência lógica, mas antes a exibição, a afirmação, de algo que não possuímos, a que apenas podemos aspirar.

Ainda assim, a coerência é das mais aclamadas e esperadas virtudes em política, no que é um convite à exibição dessa superiorid­ade, dessa arrogância, de certa forma transforma­ndo a coerência em automatism­o, cinismo e já não tanto em virtude ou verdade, porque ela surge precisamen­te como instrument­o moral de afirmação e não como falível tentativa de atuação.

Não se trata aqui de defender o oportunism­o, a mudança instrument­al de opiniões e posições, que existe muito e não deveria, ou de fazer um convite à aleatoried­ade, à desconform­idade entre o que se pensa e o que se diz. Trata-se antes de evidenciar a naturalíss­ima disposição de adaptação à realidade, que implica mudança constante e provoca contradiçõ­es, retificaçõ­es, voltas atrás; de reconhecer que a nossa existência se confunde mais com o erro e o desacerto do que aquilo que gostamos de pensar. De outra maneira: trata-se de alertar para a fragilidad­e em que sempre se encontram os que fazem da coerência um ativo moral, derradeiro, porque é inevitável o momento da contradiçã­o, do confronto com a condição humana, e o julgamento que dele e da sua contradiçã­o se fará depende mais da arrogância com que se apresentou do que da humana contradiçã­o que o denunciou.

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