A casa e o caso Robles
Já tudo foi dito sobre o caso e a casa, uma caricatura absoluta, da compra barata ao Estado à venda cara na Christie’s usando a lei da Cristas, tudo em Alfama, epicentro do terramoturismo, tudo pela mesma pessoa que passou meses a falar contra isso, mas que escreveu um hino ao pato-bravismo, a história de poucos milhares transformados em muitos milhões alavancados na banca. A caricatura só não é completa porque falta lá o BES e só não está lá o BES porque já não havia BES.
Representação tão perfeita de hipocrisia era desconhecida. Há quem se tenha aproximado. Diana Abbott, a deputada e ministra-sombra trabalhista que é uma feroz crítica das escolas privadas, como culpadas pela eternização dos problemas de classe, sistema que nas suas palavras ninguém pode coerentemente defender sem ser um hipócrita, e depois mandou o filho para uma escola privada; ou o pastor Ted Haggard, violento crítico da homossexualidade até se ter descoberto a sua relação com o massagista; ou Eliot Spitzer, que enquanto procurador-geral do estado de Nova Iorque conseguiu encerrar a agência de viagens Big Apple Oriental Tours porque levava homens ao Sudoeste Asiático em packs que incluíam prostitutas e depois teve de se demitir por ser apanhado num escândalo de prostituição (o famoso Client 9).
Foi a vertente de contradição perfeita, de caricatura fidedigna, que levou à violência da reação. O Bloco e Robles foram vítimas da sua violência, do julgamento popular, do gozo das redes sociais, precisamente porque o caso era fácil de mais (o Bloco tinha sobrevivido absolutamente incólume aos seus dois tropeções (“o senhor não sabe o que é gerar uma vida”, e as suspeitas de corrupção da sua autarca de Salvaterra de Magos, que depois foram arquivadas) mas terá maior dificuldade em livrar-se dos efeitos Robles.
A reação inicial do Bloco, desastrosa, deveu-se a uma proteção instintiva por estar a ser atacada a fação PSR na pessoa da sua até então maior promessa, daí o que fez Louçã, e daí o que desfez Fazenda, e Catarina Martins a ter de fazer, em pouco menos de dois dias, de Pôncio e de Pilatos, tentando servir a dois fundadores. No interior do Bloco, a farpa de Fazenda não tardará a fazer ricochete e a reclamar vítimas na fação UDP. Mas à esquerda também não será esquecida a brutalidade da reação do PCP. Jerónimo disse “tenho esta tranquilidade imensa de continuar a fazer política da forma como aprendi: procurar resgatar o que de mais nobre tem a política, que é servir os interesses dos trabalhadores e do povo e não me servir a mim próprio”; ou seja, Jerónimo disse que Robles se serviu a si próprio através da política, acusação que mais ninguém no espectro político fez.
Mas o caso também mostrou que cada casa é um caso, e reiterou uma distinção que todos ainda conseguimos fazer: Varoufakis pode ter um terraço em Atenas com vista e piano na sala, Pablo Iglesias pode comprar uma vivenda com piscina e barbecue por seiscentos mil, em tudo isto há uma ponta para criticar, mas é crítica que não pega, porque no fundo no fundo todos queremos uma vida melhor e uma casa com vista. Excluo daqui casos que me parecem descabidos, como as críticas ao alojamento local de Catarina Martins ou as idas de António Filipe a um hospital privado.
A parte verdadeiramente triste de tudo isto é só uma, é que o fim da carreira política de Robles pode ter trazido a ruína da carreira de Robles, o empreendedor. Que investidor quer agora dar quase seis milhões de euros pelo imóvel mais escrutinado de Portugal, com Arnaldo de Matos à perna em direto no Twitter (os ajustes de contas na extrema da esquerda têm sempre uma hemato-beleza própria), com os jornalistas a farejar cada passo do licenciamento, do procedimento do leilão, da concessão de crédito, da autorização do andar de cima; com os inquilinos do bloco de apartamentos empoderados pelo apartamento do Bloco, tudo a querer quinhoar nos seis milhões, agora em direto na TV, salivando; a vandalização das paredes (bem bonitas por sinal, ton sur ton com os olhos do proprietário); enfim uma espécie de mau-olhado dos mercados a pairar sobre um bom investimento. É que não havendo qualquer irregularidade no negócio, seria bom que este ficasse a salvo. Porque ninguém tem o direito de enguiçar um negócio válido. Ninguém, a não ser o Bloco, claro.
Jurista
O caso mostrou que cada casa é um caso. Varoufakis pode ter um terraço em Atenas, Pablo Iglesias pode comprar uma vivenda com piscina e
barbecue, em tudo isto há uma ponta para criticar, mas é crítica que não pega, porque no fundo todos queremos uma vida melhor, uma casa com vista.