Na ausência dos anjos
Oestival caso Ricardo Robles revela-nos, entre outras lições, o caráter insubstituível do ensinamento dos clássicos. O problema central da política - antes da entrada em cena do ruidoso jargão especializado de economistas, juristas, sociólogos, politólogos, etc. - é de natureza subjetiva. Antes das coisas, o que é preciso pensar na política são as pessoas. Trata-se de um problema de pessoal, no duplo sentido: quem são os membros que constituem o corpo que designamos como político? Quem está mais bem habilitado para o desempenho de cargos públicos nesse corpo artificial? Sobre a primeira questão, importa recordar que qualquer entidade política constitui-se entre seres humanos, isto é, criaturas capazes de grandeza, mas também frágeis, inseguras, que preferem ser amparadas pela força da opinião alheia, mesmo que isso implique sacrificar a solidez de um juízo rigoroso ou a fidelidade a valores validados como universais. A granítica formulação de James Madison, em 1787, continua inabalável: se os homens fossem anjos, não seria necessário constituir qualquer espécie de governo, se os homens fossem governados por anjos, não seriam necessários quaisquer controlos externos ou internos sobre o governo... Da condição humana - sempre inclinada a ser condescendente com o abuso do interesse próprio e implacável para com o desvio alheio - segue-se que para os cargos de responsabilidade política não deveria servir qualquer um. A democracia, com pés no chão e de carne e osso, é o regime em que todos escolhem, mas poucos são os escolhidos. O problema central da qualidade da democracia é, assim, um problema de casting. A afinidade entre o problema da escolha de governantes e o da escolha de bons atores é matricial, pois tanto a democracia como o teatro foram criados, numa misteriosa simultaneidade, pelos atenienses de há 25 séculos!
A democracia de Péricles foi ferida pela arrogância que levou à Guerra do Peloponeso. Contudo, o remédio seguinte, a abolição da democracia, limitou-se a agravar o problema, pois transformou os erros de casting em colossais tragédias coletivas. Como veio a repetir-se na Europa, quando sanguinários delinquentes profissionais, como Estaline e Hitler, se transformaram em tiranos perpétuos. O caso Robles mostra, pelo contrário, a força corretiva e o sortilégio pedagógico da democracia, que põe a nu o lenho retorcido de que somos feitos. Em escassos dias, sem alarde institucional, nem comissões de inquérito, apenas pelo trabalho da imprensa livre, talvez tenha sido possível resgatar, em regime de tempo integral para a esfera da iniciativa privada, um jovem e talentoso “empreendedor”, cuja vocação parece ter sido revelada na esfera do serviço público. No caso Robles ilustra-se também as virtudes catárticas do riso que, como escreveu Hannah Arendt, derruba toda a autoridade moral meramente aparente. Aqui a vítima foi Catarina Martins, compreendendo tardiamente por que contra gargalhadas não há argumentos. Mas também ela terá crescido, política e humanamente, com este episódio.
Para os leitores que se indignem por eu reduzir, pela força da lógica, também a um erro de casting a tragédia da maciça corrupção político-financeira que levou Portugal ao colapso declarado em 2011, de que ainda não saímos, a pergunta que lhes deixo é simples: será que todos fizemos, como cidadãos, o que deveria ter sido realizado para evitar essa queda no abismo?
Professor universitário