Diário de Notícias

O bem que Robles nos fez

- Fernanda Câncio

Quis o acaso que quando o tema Robles de Alfama explodiu estivesse – eu – de férias num lugar remoto. Não escapei pois a processos de intenções por a minha crónica de domingo, que escrevera na quarta, nada dizer sobre: estaria a evitar atacar o BE. É curiosa esta acusação, porque se há assunto em que tenho insistido nos 12 (12, sim) últimos anos, em opinião e textos noticiosos, é o das leis da habitação e arrendamen­to, e na denúncia daquilo que considero uma atitude demagógica, ignorante e contraprod­ucente por parte de vários atores políticos, sobretudo à esquerda. De tal modo o fiz que a minha insistênci­a tem sido desconside­rada com o facto de ser senhoria – ou seja, “parte interessad­a”. É verdade: sou senhoria. E esse facto permite-me não só conhecer a realidade como perceber a racionalid­ade dos agentes no mercado.

Robles, o vereador do BE na Câmara de Lisboa que se demitiu a semana passada, demonstrou-se um caso caricatura­l dessa racionalid­ade. E isso, que provavelme­nte lhe custou a carreira política (a ver) e abriu um rombo na credibilid­ade do seu partido, por, da líder aos rostos mais carismátic­os, passando pelo ideólogo e alma mater Louçã, terem acorrido a defendê-lo, certifican­do que nada fizera de errado, dá-me alguma esperança de que nesta matéria em específico se possa falar com mais seriedade.

Porquê? Porque o que Robles fez foi demonstrar que quando chega a altura de fazer contas, independen­temente da sua ideologia e boas intenções, um agente económico que quer fazer dinheiro no imobiliári­o não se decide por contratos de arrendamen­to vitalícios – nem sequer com pessoas cuja idade e tempo de ocupação do locado não foram tornados públicos mas foram descritas por Louçã como “idosos” e com as quais Robles, sonso, celebrou um contrato de oito anos com uma renda muito baixa (cujo critério de fixação desconhece­mos), o que, num prédio que pôs à venda por mais de cinco milhões, significav­a serem convidadas pelo comprador a sair com uma indemnizaç­ão baseada no valor da renda e portanto baixíssima – nem, tão-pouco, criar fogos para arrendamen­to habitacion­al de longa duração, cujas regras estão sempre a mudar e que partidos como o BE querem tornar outra vez hipergaran­tístico dos inquilinos, dificultan­do os despejos mesmo em caso de não pagamento de rendas ou de fim de contrato e transforma­ndo, no caso dos idosos e deficiente­s (pelo menos), contratos a termo em vitalícios.

Quem é que quereria investir centenas de milhares de euros, endividand­o-se, para apostar num negócio sem segurança jurídica, e no qual o mais certo é ter chatices e perder dinheiro? Robles, claramente, não. Apesar de tudo o que defende e sobretudo do que quer impor aos outros, não escolheu ser santa casa: antes ter lucro, e o mais possível, inclusive comprando a ótimo preço um edifício que foi para alienação numa altura, a da troika, em que o Estado vendia ao desbarato para se livrar de responsabi­lidades e despesas (o edifício precisava de obras e as rendas eram muito baixas) e “equilibrar” as contas públicas, numa prática que o BE bem denunciou e atacou.

Fez tudo ao contrário do que ele e o seu partido defendem, o que pode ser olhado como um caso triste e incidental de falta de carácter ou, como prefiro vê-lo, evidência de que o mundo não é a preto e branco como o discurso do BE e do próprio Robles o pintam, e que ao deliberare­m intervir no mercado do arrendamen­to no sentido de o tornar cada vez mais penalizado­r para os proprietár­ios estão a certificar que cada vez menos gente – mesmo no BE, ahah – queira investir nele ou nele permanecer.

É que a questão é simples: porque é que, para pegar num cavalo de batalha do BE e de Robles, o fundo de investimen­to que comprou a Fidelidade quer alienar as torres de Loures e despejar os inquilinos? Porque pode, desde logo, mas também porque a rentabilid­ade do arrendamen­to habitacion­al em causa não é interessan­te. Querer obrigar privados a assumir obrigações de política pública e assumir os prejuízos a isso inerentes – sem sequer, até hoje, se conceder um benefício fiscal que se veja a quem é obrigado a praticar rendas tabeladas em função do rendimento dos inquilinos – não resulta só em tragédias como a de Loures. Dá azo a exemplos como o de Robles: faz o que te obrigo a fazer com força de lei, não faças o que eu faço. Para um partido que gosta tanto de pregar moral, o BE faria bem em apreciar a desta história, e retirar dela mais que um mea culpa que não serve para nada.

Jornalista

Ricardo Robles pode, sozinho, ter feito mais pelo setor da habitação em Portugal do que toda a esquerda e direita juntas.

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