Porque desconfio das autobiografias
Às vezes, por saberem que trabalho com biografias e já produzi algumas, perguntam-me se um dia escreverei a minha autobiografia. A resposta é decididamente não. E por uma razão simples: não acredito em autobiografias. Por não acredito quero dizer que não acredito no que está escrito nelas. “Todo o ser humano se olha ao espelho e se vê num vitral”, já dizia Nelson Rodrigues – que, por acaso, biografei. E há também uma razão técnica para que eu discorde até da palavra autobiografia.
O que seria uma autobiografia? Por definição, uma biografia escrita pelo próprio biografado. Mas, para fazer jus ao nome, o autobiógrafo – se assim podemos chamá-lo – deveria empregar as mesmas ferramentas de um biógrafo convencional. E, entre estas, na minha opinião e na de outros biógrafos que conheço, está a obrigatoriedade de entrevistar pelo menos duzentas pessoas que privaram com o biografado, trabalharam com ele, amaram-no ou detestaram-no, conheceram a sua família ou passaram de forma significante pela sua vida, mesmo que rapidamente. E, claro, ler uma montanha de documentos, muitos deles descobertos em gavetas que não se abriam há anos.
Um livro de grande sucesso lançado no ano passado no Brasil foi a Autobiografia de Rita Lee. É divertido e revelador, mas não é uma autobiografia. A querida Rita não entrevistou duzentas pessoas a seu próprio respeito. Nem mesmo vinte. E desconfio que sequer duas. Entrevistou somente a si mesma, vasculhou apenas a própria memória e duvido de que tenha desencavado muitos papéis obscuros, perdidos em gavetas secretas. Donde o livro de Rita não é uma autobiografia, mas uma “memória” – porque a sua memória foi a única fonte que ela ouviu. E, quando se trata de ouvir apenas a própria memória, todos sabemos como esta pode ser traiçoeira.
Donde uma memória não é uma autobiografia, mas pode ficar muito apreciável se for chamada apenas disso – de uma memória. Sob este rótulo, ninguém poderá questionar a exatidão do que se escreveu. Dá-se de barato que toda a memória é falha e que, depois de muitos anos, tende a ser seletiva e a selecionar a nosso favor. Pois, mesmo que seja assim, eu não me importo: qualquer livro de memórias publicado por uma pessoa será importante como fonte (mas apenas como fonte) quando, anos depois, alguém resolver escrever a biografia dela. E, nesse caso, a tarefa de confirmar ou desmentir o que essa pessoa escreveu sobre si mesma caberá ao biógrafo.
Assim sendo, considero que todo o mundo, famoso ou anónimo, deveria escrever as suas memórias – um dia elas serão úteis a alguém. E acho imperdoável que grandes brasileiros, homens que levaram décadas convivendo com o glamour, o poder e o talento, como Millôr Fernandes, Otto Lara Resende, Vinicius de Moraes, tenham morrido sem nos deixar as suas memórias (mesmo que para ser publicadas muito depois de sua morte).
Daí, se não acredito nas “autobiografias” alheias, porque acreditaria na minha? Em compensação, acredito e muito na minha memória. Mas, infelizmente, ela não está a meu serviço. Está a serviço das centenas de pessoas que escuto a cada biografia que produzo e cujas informações tenho de guardar enquanto conversamos – à espera de que, em suas cabeças, surjam brechas onde, até àquele dia, ninguém havia ainda penetrado. Ruy Castro é jornalista e escritor brasileiro, autor de, entre outros livros, O Anjo Pornográfico – A Vida de Nelson Rodrigues” (Tinta da China).
Na obrigação do biógrafo está entrevistar duzentas pessoas que privaram com o biografado. E ler muitos documentos. Uma memória não é uma biografia.