A geopolítica do desporto
Como o roteiro da geopolítica do desporto – sobretudo a atribuída aos BRICS – pode servir para a normalização dessas nações nas relações internacionais. E também como o contrário parece ser o que acontece: conluio entre dirigentes e regimes facilitadores de todo o tipo de esquemas.
Parece que foi ontem, mas passaram dez anos. Recuemos até 2008, ano das grandes viragens estratégicas do pós-Guerra Fria. Nos EUA, a crise do subprime já tinha dado à costa, mas rapidamente evoluiu para a maior hecatombe financeira ocidental desde a grande depressão dos anos 1920. Ao mesmo tempo, a Rússia começou o verão a invadir a Geórgia, num assomo de testosterona imperial sobre o Cáucaso e um travão ao alargamento da NATO. Diga-se que resultou. E em Pequim começavam os Jogos Olímpicos apoteóticos para um regime que a partir daí se expressou ao mundo em termos muito mais ambiciosos e disruptivos. Não foi à toa: os megaeventos desportivos são cada vez mais um espelho geopolítico dos seus anfitriões. E um instrumento.
Não há, à partida, nenhum mal nisso. Cada um faz pela vida e joga as cartadas na política internacional o melhor que pode e sabe. A questão estará no nebuloso processo de atribuição prévio e, a jusante, na constante podridão associada à atribulada gestão orçamental milionária que envolve esses eventos. Por um lado, basta acompanhar as polémicas degenerativas no Comité Olímpico ou na FIFA para percebermos a falta de transparência e a troca de favores que cosem as decisões da cúpula. Por outro, a corrupção endémica que envolve o novelo interno em muitos regimes que têm sido palco de grandes certames desportivos. Basta recordar os Jogos Olímpicos de Inverno em Sochi (Rússia, 2014) e a derrapagem de 25 mil milhões de euros à mercê de uma corte de empresários a gravitar à volta de Putin, quantos deles atores fundamentais na hierarquia de poder do Kremlin. Ou o impacto político que atravessou a organização e os gastos do Mundial FIFA e dos Jogos Olímpicos no Brasil, em 2014 e 2016.
Claro que a instrumentalização política dos grandes eventos desportivos não é uma novidade. Basta recordar os Jogos Olímpicos de Berlim (1936) e a argumentação do comité sobre a restituição à Alemanha da sua inserção na comunidade internacional depois da Grande Guerra, tendo então o regime nazi feito tudo para maximizar a demonstração sanguínea do seu projeto e os opositores uma oportunidade para humilhar Hitler, como os afro-americanos Jesse Owens, Ralph
A África do Sul, o Brasil, a Rússia, Pequim e o Qatar já receberam eventos desportivos internacionais. Comum a todos? Derrapagens orçamentais, corrupção, ostentação.
Metcalfe, Archibald Williams, John Woodruff ou Cornelius Johnson, todos medalhas de ouro em várias disciplinas do atletismo.
Na Guerra Fria, os Jogos Olímpicos continuaram a ser palco de afirmação ou repulsa política, com a União Soviética a boicotar várias edições até 1952 e em 1984, na cidade de Los Angeles. Em sentido oposto, os EUA, entre muitas outras nações, boicotaram os Jogos de Moscovo, em 1980, só tendo o quadro normalizado quando a Guerra Fria terminou e o desanuviamento internacional passou a pautar a instrumentalização geopolítica dos megaeventos desportivos. No entanto, é perfeitamente possível identificar, por exemplo, no culto da atuação desportiva dos atletas da antiga RDA uma expressão da rigidez do regime, na medida em que qualquer vitória numa modalidade olímpica prolongava a guerra ideológica que se travava.
O mesmo era válido para soviéticos, chineses e jugoslavos, tal como para americanos ou israelitas. Aliás, não é à toa que um massacre como o de Munique, em 1972, contra a comitiva israelita, tenha acontecido precisamente nuns Jogos Olímpicos, que não foram só o primeiro grande evento desportivo a ter lugar na Alemanha desde o final da Segunda Guerra Mundial como a primeira grande demonstração mediática em que a bandeira de Israel era aí hasteada, ainda por cima na cidade berço do partido nazi, num sinal claro de aceitação de um novo rumo da história. A amplificação televisiva fez o resto.
Mais recentemente, embora noutro registo, a forma simultaneamente natural e habilidosa como a presidente da Croácia se envolveu na caminhada da seleção até à final do Mundial da Rússia, e o impacto que teve na sociedade croata e na sua elevação política à escala europeia, diz-nos como o desporto pode ser a continuação da política por outros meios. Recordo bem as primeiras imagens que associo à Croácia refletirem uma personalidade internacional pós-jugoslava assente no desporto de massas. Aliás, foi essa a estratégia do presidente Tudman, o primeiro da Croácia independente, que dizia ser o desporto “a primeira coisa pela qual se consegue distinguir as nações a seguir à guerra”. Lembro-me da final do torneio olímpico de basquetebol em 1992, só perdida para o Dream Team de Michael Jordan, Magic Johnson e Larry Bird. Depois, o acompanhamento da entrada de Draen Petrovi no estrelato inatingível da NBA e a comoção com o seu trágico desaparecimento, culto que ainda hoje se vê em Zagreb. Por fim, a chegada da geração de ouro ao auge de grandes competições de futebol, no Euro 96 e no Mundial de 98 (terceiro lugar), sempre em volta daquele quinteto maravilha campeão do mundo de sub-20, em 1987, então com a camisola da Jugoslávia – Šuker, Boban, Jarni, Štimac e Prosineki. Foi o desporto que ajudou a solidificar rapidamente a nação croata numa região de guerras.
Entretanto, a nova geopolítica do desporto iniciada em Pequim (2008) correu todos os BRICS com exceção da Índia. A África do Sul organizou o Mundial de 2010, o Brasil o Mundial de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, a Rússia os Jogos Olímpicos de Inverno em 2014 e o Mundial em 2018, e Pequim acolherá os Jogos Olímpicos de Inverno em 2022. No intervalo, o Qatar, o emirado do Golfo mais afoito na política internacional, receberá em 2022 o Mundial de futebol mais caro da história, apesar de envolvido numa investigação sobre subornos a delegados da FIFA que resultaram em detenções. Comum a todos? Derrapagens orçamentais, perpetuação da corrupção, ostentação de regime, charme internacional. Onde quero chegar? Aqui: ou o roteiro da geopolítica do desporto atribuída aos BRICS serve um desígnio de normalização dessas nações nas relações internacionais, ou apenas o propósito mesquinho de conluio entre dirigentes das organizações e regimes facilitadores de todo o tipo de esquemas. Inclino-me para a segunda via. Debaixo da “organização de excelência” vive um submundo perverso ao desporto e às sociedades anfitriãs. Perdemos todos, ganham alguns.