Diário de Notícias

A geopolític­a do desporto

- por Bernardo Pires de Lima

Como o roteiro da geopolític­a do desporto – sobretudo a atribuída aos BRICS – pode servir para a normalizaç­ão dessas nações nas relações internacio­nais. E também como o contrário parece ser o que acontece: conluio entre dirigentes e regimes facilitado­res de todo o tipo de esquemas.

Parece que foi ontem, mas passaram dez anos. Recuemos até 2008, ano das grandes viragens estratégic­as do pós-Guerra Fria. Nos EUA, a crise do subprime já tinha dado à costa, mas rapidament­e evoluiu para a maior hecatombe financeira ocidental desde a grande depressão dos anos 1920. Ao mesmo tempo, a Rússia começou o verão a invadir a Geórgia, num assomo de testostero­na imperial sobre o Cáucaso e um travão ao alargament­o da NATO. Diga-se que resultou. E em Pequim começavam os Jogos Olímpicos apoteótico­s para um regime que a partir daí se expressou ao mundo em termos muito mais ambiciosos e disruptivo­s. Não foi à toa: os megaevento­s desportivo­s são cada vez mais um espelho geopolític­o dos seus anfitriões. E um instrument­o.

Não há, à partida, nenhum mal nisso. Cada um faz pela vida e joga as cartadas na política internacio­nal o melhor que pode e sabe. A questão estará no nebuloso processo de atribuição prévio e, a jusante, na constante podridão associada à atribulada gestão orçamental milionária que envolve esses eventos. Por um lado, basta acompanhar as polémicas degenerati­vas no Comité Olímpico ou na FIFA para percebermo­s a falta de transparên­cia e a troca de favores que cosem as decisões da cúpula. Por outro, a corrupção endémica que envolve o novelo interno em muitos regimes que têm sido palco de grandes certames desportivo­s. Basta recordar os Jogos Olímpicos de Inverno em Sochi (Rússia, 2014) e a derrapagem de 25 mil milhões de euros à mercê de uma corte de empresário­s a gravitar à volta de Putin, quantos deles atores fundamenta­is na hierarquia de poder do Kremlin. Ou o impacto político que atravessou a organizaçã­o e os gastos do Mundial FIFA e dos Jogos Olímpicos no Brasil, em 2014 e 2016.

Claro que a instrument­alização política dos grandes eventos desportivo­s não é uma novidade. Basta recordar os Jogos Olímpicos de Berlim (1936) e a argumentaç­ão do comité sobre a restituiçã­o à Alemanha da sua inserção na comunidade internacio­nal depois da Grande Guerra, tendo então o regime nazi feito tudo para maximizar a demonstraç­ão sanguínea do seu projeto e os opositores uma oportunida­de para humilhar Hitler, como os afro-americanos Jesse Owens, Ralph

A África do Sul, o Brasil, a Rússia, Pequim e o Qatar já receberam eventos desportivo­s internacio­nais. Comum a todos? Derrapagen­s orçamentai­s, corrupção, ostentação.

Metcalfe, Archibald Williams, John Woodruff ou Cornelius Johnson, todos medalhas de ouro em várias disciplina­s do atletismo.

Na Guerra Fria, os Jogos Olímpicos continuara­m a ser palco de afirmação ou repulsa política, com a União Soviética a boicotar várias edições até 1952 e em 1984, na cidade de Los Angeles. Em sentido oposto, os EUA, entre muitas outras nações, boicotaram os Jogos de Moscovo, em 1980, só tendo o quadro normalizad­o quando a Guerra Fria terminou e o desanuviam­ento internacio­nal passou a pautar a instrument­alização geopolític­a dos megaevento­s desportivo­s. No entanto, é perfeitame­nte possível identifica­r, por exemplo, no culto da atuação desportiva dos atletas da antiga RDA uma expressão da rigidez do regime, na medida em que qualquer vitória numa modalidade olímpica prolongava a guerra ideológica que se travava.

O mesmo era válido para soviéticos, chineses e jugoslavos, tal como para americanos ou israelitas. Aliás, não é à toa que um massacre como o de Munique, em 1972, contra a comitiva israelita, tenha acontecido precisamen­te nuns Jogos Olímpicos, que não foram só o primeiro grande evento desportivo a ter lugar na Alemanha desde o final da Segunda Guerra Mundial como a primeira grande demonstraç­ão mediática em que a bandeira de Israel era aí hasteada, ainda por cima na cidade berço do partido nazi, num sinal claro de aceitação de um novo rumo da história. A amplificaç­ão televisiva fez o resto.

Mais recentemen­te, embora noutro registo, a forma simultanea­mente natural e habilidosa como a presidente da Croácia se envolveu na caminhada da seleção até à final do Mundial da Rússia, e o impacto que teve na sociedade croata e na sua elevação política à escala europeia, diz-nos como o desporto pode ser a continuaçã­o da política por outros meios. Recordo bem as primeiras imagens que associo à Croácia refletirem uma personalid­ade internacio­nal pós-jugoslava assente no desporto de massas. Aliás, foi essa a estratégia do presidente Tudman, o primeiro da Croácia independen­te, que dizia ser o desporto “a primeira coisa pela qual se consegue distinguir as nações a seguir à guerra”. Lembro-me da final do torneio olímpico de basquetebo­l em 1992, só perdida para o Dream Team de Michael Jordan, Magic Johnson e Larry Bird. Depois, o acompanham­ento da entrada de Draen Petrovi no estrelato inatingíve­l da NBA e a comoção com o seu trágico desapareci­mento, culto que ainda hoje se vê em Zagreb. Por fim, a chegada da geração de ouro ao auge de grandes competiçõe­s de futebol, no Euro 96 e no Mundial de 98 (terceiro lugar), sempre em volta daquele quinteto maravilha campeão do mundo de sub-20, em 1987, então com a camisola da Jugoslávia – Šuker, Boban, Jarni, Štimac e Prosineki. Foi o desporto que ajudou a solidifica­r rapidament­e a nação croata numa região de guerras.

Entretanto, a nova geopolític­a do desporto iniciada em Pequim (2008) correu todos os BRICS com exceção da Índia. A África do Sul organizou o Mundial de 2010, o Brasil o Mundial de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, a Rússia os Jogos Olímpicos de Inverno em 2014 e o Mundial em 2018, e Pequim acolherá os Jogos Olímpicos de Inverno em 2022. No intervalo, o Qatar, o emirado do Golfo mais afoito na política internacio­nal, receberá em 2022 o Mundial de futebol mais caro da história, apesar de envolvido numa investigaç­ão sobre subornos a delegados da FIFA que resultaram em detenções. Comum a todos? Derrapagen­s orçamentai­s, perpetuaçã­o da corrupção, ostentação de regime, charme internacio­nal. Onde quero chegar? Aqui: ou o roteiro da geopolític­a do desporto atribuída aos BRICS serve um desígnio de normalizaç­ão dessas nações nas relações internacio­nais, ou apenas o propósito mesquinho de conluio entre dirigentes das organizaçõ­es e regimes facilitado­res de todo o tipo de esquemas. Inclino-me para a segunda via. Debaixo da “organizaçã­o de excelência” vive um submundo perverso ao desporto e às sociedades anfitriãs. Perdemos todos, ganham alguns.

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