Da doca de Santo Amaro às luas de Saturno
Como outros fenómenos climáticos, a vaga de calor produz migrações em massa, com milhares de pessoas à procura de lugares mais confortáveis, onde a vaga de calor não se faça sentir com tanta intensidade e seja possível trocar opiniões sobre a vaga de calor. Respondendo à perturbação no equilíbrio deste delicado ecossistema, alcateias de repórteres selvagens abandonaram de pronto os seus habitats naturais e percorreram o país de norte a sul, privilegiando as áreas com maior concentração de presas. Tal como os crocodilos e outros predadores de oportunidade aguardam que a presa vulnerável se aproxime da água – na praia fluvial de Braga, ou na doca de Santo Amaro – antes de a emboscarem com um microfone à frente da boca, perguntando o que pensa sobre a vaga de calor. “Então como é que tem sido isto com o calor?” “Não se aguenta. Só se está bem na água.” “Vou agora perguntar aqui a esta outra senhora... também tem sofrido com o calor?” “Muito. Muito calor!”
Em cativeiro, no estúdio da TVI, onde o oráculo ia proclamando candidaturas ao Guinness (“temperaturas históricas”, “recordes vão ser batidos”, “valores nunca antes registados”, etc.), José Alberto Carvalho contextualizou graficamente a situação, com um mapa de Portugal subdividido em alarmes cromáticos: “O mapa tem estas partes, laranja e vermelho... correspondentes... aos níveis de alerta... as cores são portanto... autoexplicativas...” Igualmente autoexplicativa foi a resposta de um meteorologista a quem perguntaram se o recorde de temperatura na Amareleja em 2003 ia ser batido: “Não podemos dizer com toda a certeza que vai ser batido, mas há essa possibilidade.”
No terreno, os repórteres continuavam os ferozes interrogatórios, e a variedade de respostas à questão “o que acha do calor?” foi compondo um repositório de tipos digno da obra de Gil Vicente: o Resignado (“a gente aguenta... que remédio”), o Revoltado (“isto está insuportável”), o Optimista (“está calorzito, mas assim até é melhor para a praia”), o Brincalhão (“bebe-se muita água... e também outras coisas!”), o Erudito (“está de ananases, como dizia o Eça”), o Esforçadamente Fluente (“esta... oscilação térmica... é de facto desagradável”), o Misantropo (“o problema não é o calor, são as pessoas”) e o Veterano Calejado (“isto não é nada, os mais novos é que não está habituados e queixam-se de tudo”).
O certo é que o clima fornece cada vez oportunidades para não estarmos habituados e os queixosos começam a vasculhar o universo em busca de soluções alternativas. Marte, uma grande produção da National Geographic cujo primeiro episódio a RTP1 transmitiu na terça-feira, tenta mostrar um caminho possível. Uma intrigante mistura de ficção e documentário, a série faz pela linguagem da tecno-utopia expansionista o mesmo que os microfones da TVI fizeram pelo espectro de respostas humanas ao calor: fornece uma amostra representativa.
“Nós sonhamos... É o que nos une... Está no nosso ADN... Atravessámos os oceanos... Conquistámos os continentes... E quando esgotámos as fronteiras na Terra... olhámos as estrelas.” A parte ficcional começa em 2033, com uma ignição de retrofoguetes. A nave Dédalo transporta até Marte uma equipa multicultural que inclui entre os seus membros uma pessoa chamada Foucault, seguindo o exemplo dado por Lost (que tinha um Locke e um Hume) de apelidar personagens com nomes de filósofos. É seguramente uma questão de tempo até o truque ser adoptado por cá, e as telenovelas nacionais nos apresentarem um polícia carrancudo chamado José Gil ou um empresário sem escrúpulos chamado Agostinho da Silva.
A nave e a equipa passam pelos problemas habituais (“as válvulas do propulsor não reagem!”), mas conseguem chegar sãos e salvos ao destino, cumprindo o sonho dos visionários que dão corpo e voz à parte documental. Elon Musk é o que tem mais tempo de antena, e a série parece a espaços um anúncio à SpaceX, a companhia que fundou com o objectivo a curto prazo de permitir voos comerciais para Marte e, a longo prazo, colonizar o planeta, construir cidades auto-sustentáveis e criar uma espécie de cópia de segurança da Terra, protegendo a espécie da ameaça de extinção. “Será a maior aventura na história da humanidade”, garante.
Marte sempre foi objecto de fantasias salvíficas, e Musk, apesar das frequentes fricções públicas que provoca, é talvez um dos porta-vozes menos desequilibrados da tradição. Schiaparelli e Percival Lowell, os astrónomos do século XIX que observaram o planeta ao telescópio, desenharam mapas minuciosos com nomes idílicos (Arcádia, Éden, Elysium) e fundaram o mito dos Canais de Marte, criaram na imprensa da época a ideia de uma sociedade fanaticamente dedicada a projectos de obras públicas. Nikolai Fyodorov, mais tarde oficiosamente adoptado como santo padroeiro do programa espacial soviético, via a colonização de Marte como solução óbvia para o problema do excesso de população – um problema inevitável, dado que Fyodorov acreditava que a ciência iria um dia permitir ressuscitar todos os mortos através da reunião dos seus átomos dispersos. E Bogdanov, um dos rivais bolcheviques de Lenin, escreveu um romance de ficção científica em que um camarada visita Marte e encontra uma sociedade socialista perfeita.
A retórica de Musk, nem que seja por comparação, é menos exorbitante. Mas o seu projecto de uma diáspora cósmica, mesmo partindo de um pressuposto pessimista (a Terra como bomba-relógio, e a inevitável extinção da espécie), partilha um estilo de idealismo bem-intencionado e especificamente americano, que mistura o culto da Fronteira e o Destino Manifesto. O apelo utópico de Marte é precisamente a sua condição de tábula rasa: um novo Oeste, mas sem indígenas para chacinar, ecossistemas para alterar ou climas para destruir.
Dois dos tropos centrais da ficção científica – a migração interplanetária e a viagem no tempo – funcionam ambos como permissão para fantasias correctivas: o sonho de obliterar a engalfinhada complexidade do que já existe, e de recomeçar de novo, do zero, encontrando condições para fazer o que devia ter sido feito, ou não fazer o que não devia. Mas Marte não é uma tábula rasa, e uma futura colónia arrastará consigo uma herança de memórias, hábitos, instituições e problemas. Qualquer utopia plausível tem de incluir canais televisivos marcianos, com repórteres a entrevistar transeuntes em Hellas Planitia durante uma tempestade de poeira, perguntando “Então como é que tem sido isto aqui com o dióxido de carbono?” a alguém que já chegou à conclusão de que o problema não é o dióxido de carbono, mas as pessoas, enquanto lança olhares pensativos às luas de Saturno.
Jornalista. Escreve de acordo com a antiga ortografia
Numa semana dominada pela vaga de calor, os portugueses experimentaram em primeira mão um dos efeitos mais desmoralizantes associados às vagas de calor: a cobertura televisiva das vagas de calor.