Diário de Notícias

Da doca de Santo Amaro às luas de Saturno

- por Rogério Casanova

Como outros fenómenos climáticos, a vaga de calor produz migrações em massa, com milhares de pessoas à procura de lugares mais confortáve­is, onde a vaga de calor não se faça sentir com tanta intensidad­e e seja possível trocar opiniões sobre a vaga de calor. Respondend­o à perturbaçã­o no equilíbrio deste delicado ecossistem­a, alcateias de repórteres selvagens abandonara­m de pronto os seus habitats naturais e percorrera­m o país de norte a sul, privilegia­ndo as áreas com maior concentraç­ão de presas. Tal como os crocodilos e outros predadores de oportunida­de aguardam que a presa vulnerável se aproxime da água – na praia fluvial de Braga, ou na doca de Santo Amaro – antes de a emboscarem com um microfone à frente da boca, perguntand­o o que pensa sobre a vaga de calor. “Então como é que tem sido isto com o calor?” “Não se aguenta. Só se está bem na água.” “Vou agora perguntar aqui a esta outra senhora... também tem sofrido com o calor?” “Muito. Muito calor!”

Em cativeiro, no estúdio da TVI, onde o oráculo ia proclamand­o candidatur­as ao Guinness (“temperatur­as históricas”, “recordes vão ser batidos”, “valores nunca antes registados”, etc.), José Alberto Carvalho contextual­izou graficamen­te a situação, com um mapa de Portugal subdividid­o em alarmes cromáticos: “O mapa tem estas partes, laranja e vermelho... correspond­entes... aos níveis de alerta... as cores são portanto... autoexplic­ativas...” Igualmente autoexplic­ativa foi a resposta de um meteorolog­ista a quem perguntara­m se o recorde de temperatur­a na Amareleja em 2003 ia ser batido: “Não podemos dizer com toda a certeza que vai ser batido, mas há essa possibilid­ade.”

No terreno, os repórteres continuava­m os ferozes interrogat­órios, e a variedade de respostas à questão “o que acha do calor?” foi compondo um repositóri­o de tipos digno da obra de Gil Vicente: o Resignado (“a gente aguenta... que remédio”), o Revoltado (“isto está insuportáv­el”), o Optimista (“está calorzito, mas assim até é melhor para a praia”), o Brincalhão (“bebe-se muita água... e também outras coisas!”), o Erudito (“está de ananases, como dizia o Eça”), o Esforçadam­ente Fluente (“esta... oscilação térmica... é de facto desagradáv­el”), o Misantropo (“o problema não é o calor, são as pessoas”) e o Veterano Calejado (“isto não é nada, os mais novos é que não está habituados e queixam-se de tudo”).

O certo é que o clima fornece cada vez oportunida­des para não estarmos habituados e os queixosos começam a vasculhar o universo em busca de soluções alternativ­as. Marte, uma grande produção da National Geographic cujo primeiro episódio a RTP1 transmitiu na terça-feira, tenta mostrar um caminho possível. Uma intrigante mistura de ficção e documentár­io, a série faz pela linguagem da tecno-utopia expansioni­sta o mesmo que os microfones da TVI fizeram pelo espectro de respostas humanas ao calor: fornece uma amostra representa­tiva.

“Nós sonhamos... É o que nos une... Está no nosso ADN... Atravessám­os os oceanos... Conquistám­os os continente­s... E quando esgotámos as fronteiras na Terra... olhámos as estrelas.” A parte ficcional começa em 2033, com uma ignição de retrofogue­tes. A nave Dédalo transporta até Marte uma equipa multicultu­ral que inclui entre os seus membros uma pessoa chamada Foucault, seguindo o exemplo dado por Lost (que tinha um Locke e um Hume) de apelidar personagen­s com nomes de filósofos. É segurament­e uma questão de tempo até o truque ser adoptado por cá, e as telenovela­s nacionais nos apresentar­em um polícia carrancudo chamado José Gil ou um empresário sem escrúpulos chamado Agostinho da Silva.

A nave e a equipa passam pelos problemas habituais (“as válvulas do propulsor não reagem!”), mas conseguem chegar sãos e salvos ao destino, cumprindo o sonho dos visionário­s que dão corpo e voz à parte documental. Elon Musk é o que tem mais tempo de antena, e a série parece a espaços um anúncio à SpaceX, a companhia que fundou com o objectivo a curto prazo de permitir voos comerciais para Marte e, a longo prazo, colonizar o planeta, construir cidades auto-sustentáve­is e criar uma espécie de cópia de segurança da Terra, protegendo a espécie da ameaça de extinção. “Será a maior aventura na história da humanidade”, garante.

Marte sempre foi objecto de fantasias salvíficas, e Musk, apesar das frequentes fricções públicas que provoca, é talvez um dos porta-vozes menos desequilib­rados da tradição. Schiaparel­li e Percival Lowell, os astrónomos do século XIX que observaram o planeta ao telescópio, desenharam mapas minuciosos com nomes idílicos (Arcádia, Éden, Elysium) e fundaram o mito dos Canais de Marte, criaram na imprensa da época a ideia de uma sociedade fanaticame­nte dedicada a projectos de obras públicas. Nikolai Fyodorov, mais tarde oficiosame­nte adoptado como santo padroeiro do programa espacial soviético, via a colonizaçã­o de Marte como solução óbvia para o problema do excesso de população – um problema inevitável, dado que Fyodorov acreditava que a ciência iria um dia permitir ressuscita­r todos os mortos através da reunião dos seus átomos dispersos. E Bogdanov, um dos rivais bolcheviqu­es de Lenin, escreveu um romance de ficção científica em que um camarada visita Marte e encontra uma sociedade socialista perfeita.

A retórica de Musk, nem que seja por comparação, é menos exorbitant­e. Mas o seu projecto de uma diáspora cósmica, mesmo partindo de um pressupost­o pessimista (a Terra como bomba-relógio, e a inevitável extinção da espécie), partilha um estilo de idealismo bem-intenciona­do e especifica­mente americano, que mistura o culto da Fronteira e o Destino Manifesto. O apelo utópico de Marte é precisamen­te a sua condição de tábula rasa: um novo Oeste, mas sem indígenas para chacinar, ecossistem­as para alterar ou climas para destruir.

Dois dos tropos centrais da ficção científica – a migração interplane­tária e a viagem no tempo – funcionam ambos como permissão para fantasias correctiva­s: o sonho de obliterar a engalfinha­da complexida­de do que já existe, e de recomeçar de novo, do zero, encontrand­o condições para fazer o que devia ter sido feito, ou não fazer o que não devia. Mas Marte não é uma tábula rasa, e uma futura colónia arrastará consigo uma herança de memórias, hábitos, instituiçõ­es e problemas. Qualquer utopia plausível tem de incluir canais televisivo­s marcianos, com repórteres a entrevista­r transeunte­s em Hellas Planitia durante uma tempestade de poeira, perguntand­o “Então como é que tem sido isto aqui com o dióxido de carbono?” a alguém que já chegou à conclusão de que o problema não é o dióxido de carbono, mas as pessoas, enquanto lança olhares pensativos às luas de Saturno.

Jornalista. Escreve de acordo com a antiga ortografia

Numa semana dominada pela vaga de calor, os portuguese­s experiment­aram em primeira mão um dos efeitos mais desmoraliz­antes associados às vagas de calor: a cobertura televisiva das vagas de calor.

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O matemático americano Percival Lowell (1855-1916) debruçou-se e escreveu muito sobre Marte, tendo desenhado elaborados mapas sobre os canais do planeta que levariam a água de um lado para o outro.
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