A notícia da minha morte, pela TVI, é manifestamente exagerada
Não sou fã de programas da manhã, mas aconteceu estar a ver o programa de Manuel Luís Goucha, na quinta-feira. Goucha é um tipo que está bem com ele próprio e é capaz de não haver maior elogio a fazer a um apresentador televisivo. O programa chamava-se Você na TVI (ou na TV ). Logo que não se troque a marca da cadeia televisiva que transmite, “Você em...” é sempre um bom nome para programa televisivo – mete o telespectador lá dentro. Os programas da manhã costumam saber fazer isso bem. A mim meteu-me de chofre. E até de pés para frente.
Outra coisa que têm os programas matutinos é trazerem especialistas certos para as conversas. O Goucha tem um psicólogo, muito importante para se perceber o que não vemos, e um polícia, fundamental para percebermos as coisas da vida, e esta, meus amigos, deixa-nos sempre ali no borderline: é para nos safarmos ou ir dentro? Naquela manhã falava-se de uma senhora encontrada morta na estrada. Acidente? Crime? E sendo acidente o mais provável, o que levaria o motorista a escolher entre fugir ou não, sabendo que a decisão podia salvar ou não outra pessoa?
Grandes questões de psique e de código penal para as quais a precaução de Goucha escolhera os coadjuvantes necessários para uma adequada procura da verdade. Confesso que, a meio do debate, o neófito que sou em programas televisivos matutinos se distraiu com a moldura. Os assistentes diretos do programa – não a soma de “você na TVI” que éramos os do sofá caseiro, mas a plateia – constituíam uma anormal amostra da população portuguesa: os homens pareciam os dois jogadores brancos num jogo de basquetebol americano. Estava eu a pensar como pôr essa questão à minha amiga Fernanda Câncio – a composição das plateias dos programas televisivos da manhã é acintosa para as mulheres? – quando um dos especialistas do debate me trouxe uma notícia.
António Teixeira, inspetor-chefe da Polícia Judiciária, disse: “Aquele jornalista que já morreu, o Ferreira Fernandes, escreveu um dia...” Como são as coisas, ainda há dias, não sei precisar quando, já baralho sobretudo os acontecimentos mais recentes, eu tinha estado com ele. Como diz o outro, para morrer basta estar vivo, mas o Ferreira Fernandes não me pareceu estar prestes a bater a bota. Também o Goucha estava surpreendido: “Mas o Ferreira Fernandes não morreu...”
Isso disse o Goucha, com três pontinhos. Topei que não foi com um firme ponto de exclamação. Ele estava pouco certo, estava, reparei que se pôs a espreitar para o iPad. E reparei, sobretudo, que a plateia feminina seguia a dúvida do Manuel Luís Goucha como se o citado falecido fosse o Félix Faure, para citar outro FF de quem também nunca tinham ouvido falar. Por acaso o Faure, presidente francês, já morreu há muito, isso sei, e até de forma interessante para se debater num programa da manhã: durante o ato sexual. Queres ver que fica explicado o trespasse inesperado do meu amigo? Ainda há dias eu tinha estado com ele e agora... Que lhe tenha feito bom proveito.
Mas pelo que conheço dele, ele não ia gostar que o anúncio da sua morte não tenha levado a plateia a esboçar um sinal de emoção. Olha, vou avisar os meus amigos jornalistas que a morte de um desconhecido em acidente de moto numa estrada de Cantanhede talvez não mereça uma notificação para os telemóveis dos leitores. Já agora, um ferido também não. Acabava de pensar isto e dei-me conta, então, de que era a segunda vez que prometia falar com amigos... Senti um calafrio, era como aqueles que têm urgência em pôr em ordem a vida porque sabem o fim próximo. Surpreendi-me por a morte do meu amigo me afetar pessoalmente tanto.
Mas voltando à vaca fria, se posso permitir-me tratar o finado assim, talvez a plateia nunca tenha ouvido falar dele. Dei-me conta de estar a ser cruel e até preferi que se confirmasse a morte. A continuar vivo, alguém, por chacota, contava-lhe o anúncio em direto na TVI, ele ia ver as imagens da indiferença das pessoas e ainda lhe dava o badagaio. Que raio de dilema: se não lhe confirmavam a morte agora, prometiam-na logo a seguir... O Goucha continuava vasculhar discretamente no iPad.
Olhei para o psicólogo, que sobre o assunto exibia uma equidistância profissional. Uma pessoa pode estar morta, mas também pode não estar. Quintino Aires olhava para um sapato. Sentia-se o psicólogo a matutar: estará morto o Fernandes Ferreira? Já o inspetor-chefe da PJ estava um bocado abalado: “Eu gostava do que ele escrevia...” Aí, o Goucha rematou: “O Ferreira Fernandes não morreu!” e fechou iPad. E disse: “Eu também gosto de como ele escreve.” O ex-extinto, eu conheço-o de ginjeira, se lhe acontecer rebobinar o programa vai gostar daquele “de como”. Uma homenagem ao estilo.
O polícia ficou contente, genuinamente contente. Pudera, não sei como ele ia passar o auto, sem corpo, nem motivações e, pelo que conheço do meu amigo, não lhe iam arrancar uma confissão facilmente. Aliviado por não ter de explicar o modus operandi (se fosse num programa, matutino ou não, da CMTV estava tramado, como ia falar do caso de um morto sem modus operandi?), o inspetor-chefe da PJ António Teixeira retomou a história que tinha lido do meu amigo. Muito bem escrita, aliás. Então, era um tipo que tinha fugido depois de um atropelamento e como é que ele se ia olhar na cara depois?
Da próxima vez que eu vir o Ferreira Fernandes, dou-lhe um abraço comovido. Depois vou perguntar-lhe se já ouviu falar de espelhos.