Diário de Notícias

O papel do IRC

- RICARDO REIS Professor de Economia na London School of Economics

Nesta semana, a Apple tornou-se a primeira empresa na história a valer em bolsa mais de um trilião de dólares. Por sua vez, o maior acionista da Amazon, Jeff Bezos, é hoje o homem mais rico do mundo, tal o valor da sua empresa em bolsa. Uma caracterís­tica destas duas empresas, assim como de quase todas as famosas empresas tecnológic­as, é praticamen­te não pagarem IRC. Sendo multinacio­nais com produtos e custos em grande parte intangívei­s, são capazes de contabiliz­ar os lucros em quase qualquer sítio no mundo, incluindo um dos muitos território­s onde a taxa de IRC é perto de zero.

Há duas reações a este facto. Alguns usam-no para notar que o IRC é um imposto ineficient­e que deve ser eliminado. Um argumento nesse sentido é que os acionistas já pagam IRS quando recebem os rendimento­s da empresa, em dividendos ou ganhos de capital, pelo que o IRC é uma dupla taxação. Outros usam-no para justificar reformas fiscais que diminuam a capacidade de as multinacio­nais deslocarem matéria coletável além-fronteiras. Um bom exemplo são propostas para basear o IRC nacional no volume de vendas no país, em vez dos lucros como acontece atualmente.

Uma proposta mais modesta, mas com eficácia imediata, seria eliminar os paraísos fiscais dentro da União Europeia. Há décadas que o Luxemburgo e outros países bloqueiam qualquer reforma nesse sentido por causa do impacto nas suas economias. Mas qual seria o impacto de fazê-lo nas economias da UE como um todo?

Um estudo recente do economista Juan Serrato oferece uma resposta. A reforma fiscal americana de 1976 consagrou o estatuto de Porto Rico como um paraíso fiscal para as multinacio­nais americanas no rendimento que tivessem nessa ilha. Muitas empresas, sobretudo no setor farmacêuti­co, fizeram nessa altura o que faz hoje a Apple e a Amazon e transferir­am lucros para Porto Rico.

A reforma fiscal de 1996 acabou com esta isenção fiscal. Nessa altura, as empresas afetadas empregavam cerca de 11 milhões de trabalhado­res nos EUA continenta­is (excluindo Porto Rico). Comparando o investimen­to e a mão-de-obra destas empresas com outras semelhante­s que não tinham operações em Porto Rico, Serrato estima efeitos muito negativos para os EUA continenta­is desta reforma. O investimen­to das empresas cai 23% e o número de trabalhado­res desce 9%. Do investimen­to total, 18% deslocou-se para o estrangeir­o, pelo que esta reforma fiscal contribuiu para o offshoring. Olhando para as regiões em que estas empresas tinham as maiores fábricas, 15 anos depois o efeito negativo no emprego local ainda era notório. Tudo somado, a atividade económica americana perdeu, e muito, ao acabar com as isenções fiscais numa pequena parcela do território nacional.

Dentro do nosso país, é comum discutir-se de forma crítica o estatuto de Zona Franca da Madeira. Mas se estes resultados americanos se aplicarem a Portugal, muitos trabalhado­res portuguese­s devem o seu emprego à “pérola do Atlântico”.

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