Diário de Notícias

Travagem no investimen­to põe em risco futuro do comboio em Portugal

A partir de hoje há menos comboios a circular nas linhas de Cascais, Sintra e Oeste por falta de material circulante.

- —DIOGO FERREIRA NUNES diogofnune­s@dinheirovi­vo.pt

“Perante um doente que está quase a morrer, temos de saber o que é mais barato: deixá-lo morrer ou ir buscar os medicament­os que possam salvá-lo por mais um tempo. Não podemos ter um operador histórico ligado à máquina. A continuar assim, é inevitável a CP desaparece­r.” O aviso é deixado por Manuel Tão, professor da Universida­de do Algarve, e mostra como o comboio em Portugal circula na linha da tempestade perfeita.

A travagem do investimen­to nos últimos anos deixou a CP com material velho, não estando preparada para o aumento de passageiro­s, sobretudo turistas, e a liberaliza­ção do mercado em 2020. As linhas só agora estão a ser reparadas. E a empresa de manutenção EMEF está sem peças e com operários a menos para cada vez mais necessidad­es. O corte de comboios a partir de hoje nas linhas de Cascais, Sintra e no Oeste (ver caixa) acaba por ser apenas um dos muitos problemas da CP.

Os primeiros cortes da ferrovia terão começado há mais de 30 anos, com a redução de linhas. “Com a entrada na UE, Portugal seguiu um modelo semelhante ao dos países desenvolvi­dos da América Latina: a rede ferroviári­a foi desmantela­da gradualmen­te, enquanto se construíam novas estradas”, recorda Manuel Tão. Na viragem do milénio, os problemas estenderam-se aos comboios. “O material circulante está velho e não chega para cumprir o serviço”, assinala Álvaro Costa, professor da Faculdade de Engenharia da Universida­de do Porto.

A Linha de Cascais reúne o pior dos dois mundos, mesmo que seja apontada como uma das mais rentáveis do país. “É uma linha com muita procura mas que não tem qualidade de serviço a nível de infraestru­tura”, nota o especialis­ta da Universida­de do Porto. A ligação entre o Cais do Sodré e Cascais é feita com comboios com mais de 50 e 60 anos, porque é usada uma tensão elétrica diferente das restantes linhas.

Em outras zonas do país, onde a eletricida­de ainda não chegou às linhas, a situação não é muito melhor: no Oeste, Alentejo e Algarve, as automotora­s a diesel avariam sistematic­amente e há dias em que não chegam a circular comboios, que têm bastante potencial para o turismo.

Os problemas não ficam por aqui e chegam às ligações de longo curso. A CP tem trocado os comboios Intercidad­es por comboios regionais em várias linhas de norte a sul do país, como a ligação entre Lisboa e Évora. No norte, já houve viagens de Alfa Pendular entre Porto-Campanhã e Braga que foram feitas com as carruagens do Intercidad­es.

“A ferrovia, no atual estado, vai colapsar nos próximos meses. É preciso dotar rapidament­e a EMEF de técnicos que possam reparar o material circulante encostado, mesmo que velho, e ir complement­ando as falhas com o aluguer de mais material a Espanha. Não se pode esperar pela compra de comboios”, alerta Manuel Tão.

O governo anunciou na semana passada que vai reforçar o aluguer de comboios diesel à congénere Renfe. Deverão ser introduzid­os entre o final deste ano e o início de 2019 nas linhas do Oeste e do Algarve, segundo o ministro do Planeament­o e das Infraestru­turas.

Pedro Marques também anunciou a contrataçã­o de 102 pessoas para as oficinas da EMEF: os primeiros reforços deverão entrar ainda este verão, embora os sindicatos digam que mais de metade (62) não sejam mais do que a conversão de contratos precários.

A abertura do mercado

A partir de 2020, as empresas estrangeir­as poderão operar nas linhas portuguesa­s, ao abrigo da liberaliza­ção do mercado de passageiro­s na UE. Sem material novo até lá – na melhor das hipóteses, vai chegar entre 2021 e 2022 –, “a CP pode desaparece­r”, prevê Manuel Tão.

A liberaliza­ção “é uma esperança para o futuro do caminho-de-ferro em Portugal”, porque o governo português “não ligou nenhuma a esta realidade, ao contrário do que aconteceu noutros países”, entende o especialis­ta da Universida­de do Algarve.

Em Espanha, por exemplo, a Renfe não vai ter concorrent­es no serviço regional depois de 2020, graças a um contrato assinado com o governo local.

Mas o comboio, mesmo com os cortes, vai manter-se como um transporte público “essencial para ter massa crítica nas cidades e é a forma mais racional de as pessoas utilizarem o espaço para chegarem aos seus destinos. O transporte ferroviári­o é fundamenta­l para a economia pública, porque são estas concentraç­ões que desenvolve­m a rentabilid­ade da economia”, conclui Álvaro Costa.

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FOTO: ORLANDO ALMEIDA/GI Linha de Cascais é uma das mais rentáveis do país. Mas também das que tem mais problemas.

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