Diário de Notícias

25% dos incêndios acabam por nunca ser investigad­os

Faltam homens para escrutinar o fogo. O governo prometeu 200 novos guardas-florestais antes do verão, mas o concurso ainda não abriu. Os operaciona­is que vigiam as matas públicas também são escassos: num concurso com 90 vagas, só 61 foram preenchida­s.

- RICARDO J. RODRIGUES

São os guardas-florestais a primeira frente de investigaç­ão dos incêndios. Mas há poucos, e não têm tempo de escrutinar os fogos que acontecem. Na serra da Estrela, por exemplo, só há um. E o governo falhou a meta do concurso para mais.

Messias Fernandes é o dono disto tudo. Todas as manhãs, quando sai de sua casa na aldeia de Outeiro da Vinha, em Seia, e percorre as estradas do Parque Natural da Serra da Estrela, o homem sabe que todo aquele território é dele e dele apenas. É, afinal, o único guarda-florestal que existe nas terras que se estendem de Seia a Gouveia – uma das mais importante­s manchas de biodiversi­dade do país e uma das regiões mais fustigadas pelos incêndios na última década.

A parte mais importante do seu trabalho é esta: investigar as causas dos fogos. “As pessoas pensam que é uma competênci­a da Polícia Judiciária, mas não é assim. O apuramento da origem do incêndio é da responsabi­lidade da Guarda Florestal e só quando nós percebemos que ele pode constituir crime de dolo é que chamamos a PJ.” Em média, há na sua zona de ação centena e meia de incêndios por ano. “Mas a verdade é que estou aqui sozinho a olhar por esta serra toda. Então nunca consigo investigar mais de 50 fogos por ano. Os restantes não são sequer escrutinad­os, não sabemos se foram de origem criminosa, ou negligente, ou o que quer que seja.”

Um quarto dos incêndios que ocorrem no país nunca chegam a ser investigad­os por ninguém. Em 2017, diz o relatório anual do Instituto da Conservaçã­o da Natureza e das Florestas (ICNF), houve 17 557 fogos em Portugal continenta­l. Mas quando se compara este número com o Relatório Nacional de Se-

gurança Interna, verifica-se que houve apenas 13 108 inquéritos para investigaç­ão. Ou seja, a origem de 4449 incêndios – 25,4% do total de ocorrência­s – nunca chegou a ser escrutinad­a.

Messias acredita que é em primeiro lugar esta falta de guardas-florestais que está a pôr a floresta em perigo. “Se não conseguimo­s investigar, permitimos que eventuais criminosos reincidam. Acho muito bem que se reforcem os meios de vigilância e combate, mas não podem continuar a deixar-me aqui sozinho a tomar conta desta serra toda.”

Os guardas que nunca chegaram A 6 de novembro do ano passado, durante a discussão do Orçamento do Estado para 2018, o ministro da Administra­ção Interna anunciou a contrataçã­o de 200 novos guardas-florestais para reforçar o atual corpo de 307 agentes. “A contrataçã­o acontecerá no início do ano, para que estes homens estejam no terreno a partir de abril”, disse então Eduardo Cabrita. “É o renascimen­to de uma estrutura que está a ser objeto de um claro processo de esvaziamen­to.”

O anúncio foi feito, sim. Mas o concurso nunca chegou a abrir. O MAI diz agora ao DN que “foi iniciado um processo legislativ­o e abertas negociaçõe­s entre o governo e os sindicatos, que ainda estão a decorrer.” No final do passado mês de julho, os guardas-florestais fizeram uma greve de três dias, exigindo a contrataçã­o de novos agentes. Segundo a Federação dos Trabalhado­res em Funções Públicas e Sociais, houve uma adesão entre os 50% e os 70%.

“Não há qualquer perspetiva de quando poderemos abrir o concurso”, diz o representa­nte sindical Rui Raposo. “A única certeza que podemos ter é que, mesmo que o ministro decida avançar amanhã, estes homens terão de passar por um processo de formação e nunca estarão prontos para ir para o terreno antes do final do ano. Há questões remunerató­rias e salariais em cima da mesa, sim, mas há urgência em relação à presença destes investigad­ores na floresta portuguesa que está a ser ignorada de uma forma que não se compreende.”

Foi o atual primeiro-ministro, António Costa, que, em 2006, extinguiu o Corpo Nacional da Guarda Florestal quando era ministro da Administra­ção Interna de José Sócrates. Os 317 agentes que sobraram (dez deles, entretanto, reformaram-se) foram integrados no Serviço de Proteção da Natureza e do Ambiente (SEPNA) da GNR, um efetivo que o governo reforçou neste ano com cem elementos. Estas equipas cumprem trabalho de prevenção, vigilância e deteção de incêndios florestais, mas não investigam as causas dos incêndios. Essa é uma competênci­a da Guarda Florestal. Mas há pouca polícia para tanto fogo.

Longe das árvores Miguel Moura tem 39 anos, entrou no último concurso que a Guarda Florestal abriu para receber agentes, em 2004. “Passaram-se 14 anos e há uma deterioraç­ão inexplicáv­el dos recursos, humanos e materiais. Sabe uma boa metáfora para o que aconteceu à nossa profissão? É andar pela mata e ver as casas de pedra que durante anos foram um símbolo da nossa presença. Hoje estão quase todas a cair aos pedaços.”

Depois do desmantela­mento do corpo policial em 2006, o governo insistiu sempre que a Guarda Florestal não voltaria a ter novos agentes. Em agosto de 2016, já com o atual governo em funções, essa ideia foi reforçada por Jorge Gomes, na altura secretário de Estado da Administra­ção Interna. “Não faz qualquer sentido reverter a extinção da carreira dos guardas-florestais.” Mas, com os incêndios de 2017, o executivo recuou. Ou, pelo menos, disse que ia recuar.

“É de uma urgência imperativa que se retomem as contrataçõ­es”, insiste Miguel Moura. “Em todo o distrito do Porto, que é onde estou colocado, somos apenas quatro agentes.” Além das falhas na investigaç­ão aos incêndios, o guarda-florestal queixa-se também da falta de fiscalizaç­ão que existe hoje sobre as áreas de replantaçã­o. “O governo proibiu que crescesse a mancha de eucalipto no país e nós devíamos estar a controlar se de facto não há novas áreas a serem colonizada­s. Mas não controlamo­s. Não temos como.”

Quando entrou no corpo da Guarda Florestal, em 2004, Miguel foi destacado para Amarante. “A nossa sede ficava no parque florestal, mesmo às portas do Marão.” Hoje, tem a seu cargo três concelhos: Felgueiras, Lousada e Paços de Ferreira. “Desde que fomos integrados no SEPNA, o nosso comando fica no quartel da GNR de Felgueiras, mesmo no centro da cidade. Para chegar à floresta tenho de fazer no mínimo 30 quilómetro­s. Agora diga-me lá: como é que eu vou proteger as árvores se me obrigam a estar longe delas?”

 ??  ?? Messias Fernandes é o único guarda-florestal para toda a serra da Estrela. Obviamente não consegue vigiar o suficiente, e muito menos analisar e investigar todos os focos de incêndio de um ano normal. “Se não conseguimo­s investigar permitimos que criminosos fiquem à solta e sejam reincident­es.”
Messias Fernandes é o único guarda-florestal para toda a serra da Estrela. Obviamente não consegue vigiar o suficiente, e muito menos analisar e investigar todos os focos de incêndio de um ano normal. “Se não conseguimo­s investigar permitimos que criminosos fiquem à solta e sejam reincident­es.”
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