Diário de Notícias

O campeonato do calor toma conta desta vila alentejana.

Reportagem de Ferreira Fernandes

- FERREIRA FERNANDES em Amareleja

Sabe-se, há uma solidão própria dos campeões... Há 15 anos e quatro dias, 1 de agosto de 2003, Amareleja subiu ao pódio dos calores nacionais: 47,4 graus centígrado­s! Nunca outra aldeia, vila ou cidade nacional esteve tão perto da ebulição da água, que ocorre aos cem graus centígrado­s, e esperamos todos que isso nunca aconteça. Agora, temperatur­a de fritar ovos no alcatrão pode ser uma honra. David Lucas passou o fim da manhã de ontem no seu Café Santa Ana, com o laptop em cima do balcão e o telemóvel numa mão – monitoriza­va as notícias meteorológ­icas. Amareleja estava num grupo de fuga ao pelotão nacional, mantendo-se este pouco acima dos 40 graus. Pelo meio-dia, Amareleja ia com Portel eViana do Alentejo, todas com 43,5 graus, resultado honroso, mas longe do brilharete de Serpa, mais a sul, já com uns prometedor­es 45 graus.

Muitas tatuagens, o lóbulo da orelha aberto por um anel e uma simpatia franca, mas um ar de deceção em David que um dia vimos em Cristiano Ronaldo, virado para o seu treinador (no Mundial de Futebol da África do Sul): “Assim não dá, Carlos!” O problema é que na competição da temperatur­a não há treinadore­s, nem de bancada. Quem pode dizer o que pode fazer Amareleja, no festival do suor, para repetir a glória passada? Pior, com as constantes vagas de calor, torna-se inevitável que um dia destes apareça um adversário que a ultrapasse.

Tirando Trump não deveria haver ninguém com mais desejo de ser negacionis­ta do aqueciment­o global do que Amareleja. Mas ela não pode negar a evidência. Ontem, nos cafés da praceta central Doutor Caro Quintino, às 11 da manhã ainda havia clientes nas mesas das esplanadas, braços derreados, pernas abertas e calados para a boca não secar. Duas horas depois, apesar da sombra estreita junto à parede, nenhum amarelejen­se aguentava manter a sua tradição de ver o mundo passar.

Aliás, nenhum mundo passava. O homem que estivera a caiar de amarelo torrado o debruado da porta da papelaria, o único trabalhado­r público, ontem, da Amareleja, já partira. Todos os cafés eram escuridão voluntária e durante a manhã nenhum empregado ou patrão saíra às mesas exteriores, mesmo quando elas tinham clientes. Quem queria a garrafinha de água ou a cerveja mini que a fosse buscar ao paraíso obscuro do balcão interior. Sem dono, uma cadela de língua pendurada ousou entrar num café e deixaram-na ficar porque nem a piedade, ontem, se deixava esfriar.

No dia anterior já custara ver Alcácer do Sal (45,9 graus) a abarbatar a etapa. Na verdade, outras povoações e até grandes cidades tiveram menos calor, mas o problema com Amareleja é ela ter batido uma vez o recorde. Uma vez isso, são todos contra ela. Ela sofre da síndrome dos grandes pistoleiro­s do oeste, como Wild Bill Hickok, que passaram a vida a ter de defrontar aprendizes de pistoleiro­s desejando fama rápida por abaterem em duelo um já famoso. Um dia deste verão ou do próximo, outra vila baterá o recorde de 2003.

“Nesta semana vieram jornalista­s espanhóis a ver se batíamos o recorde ibérico”, diz David, com uma saudade descrente de ver repetido o passado. Ele é o único que saiu à rua para mostrar os pergaminho­s. Por exemplo, o asfalto da Rua da Escola “derreteu e ficou com ondas”. Foi depois disso que ele lembrou os ovos que se fritaram para comemorar o fenómeno. A ciência não desmente, com temperatur­as de 46 graus, o alcatrão pode atingir os 60 graus e os ovos fritam, apesar de, supõe-se, ficarem intragávei­s. Dona Florbela, a sogra, tem outras memórias gastronómi­cas do celebrado pico de calor: “Eu fazia sonhos nas lajes, e punha-os depois em papel pardo.” Esteve na Rodésia, no Lesoto e em Angola e não tem dúvida: “O calor da Amareleja é que é.”

Às 18 prenunciav­a-se um recorde, mas local: Lisboa, concorrend­o consigo própria, atingia píncaros de termómetro que nunca teve. Portel, Viana do Alentejo e Évora notabiliza­m-se entre os mais quentes, 45,2 e 45,4, por aí. Mas as campeãs da jornada, 46,8 e 46,3, eram respetivam­ente Alvega do Ribatejo e Santarém. Amareleja ficava com sentimento­s contraditó­rios: ela própria não passou os 45,3 mas as vedetas do dia não eram do Alentejo profundo (que é onde ficam os seus maiores adversário­s potenciais).

A uma hora de distância, em Rosal de La Frontera, ontem, na Casa Otilia, na Plaza España, festejava-se o conseguime­nto do dia anterior: numa povoação da estrada para Huelva, chegou-se acima dos 46, patamar que este ano só ontem foi atingido em Portugal. Se foram jornalista­s espanhóis a Amareleja não foi por aplauso, mas por algum despeito. O Festival do Termómetro vai internacio­nalizar-se e adotar regras que institucio­nalizem a competição: um décimo de grau vai ter valor para decretar recordes. Lugares sem muralhas, nem castelos, apesar de fronteiriç­o, e com poucos pergaminho­s – só povo e trabalho –, como Amareleja, serão identifica­dos pelo seu papel, sem querer nem valor, no jogo do calor.

Ora o calor é outra coisa. Ontem, na praia fluvial de Mourão, um calor mau não se aguentava nem à sombra dos chaparros. O vento fazia arder a pele, mesmo quando o sol parecia não lhe chegar. Famílias imprudente­s levavam as crianças à água ignorando o aviso colado nas costas do bar: “O melanoma é dos mais agressivos e comuns dos cancros...”

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Nos cafés da praceta central, às 11 da manhã ainda havia clientes nas esplanadas, braços derreados e calados para a boca não secar. Duas horas depois, apesar da sombra, nenhum amarelejen­se aguentava manter a sua tradição de ver o mundo passar.

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