Diário de Notícias

O último sapateiro da Baixa foi expulso da sua loja por um incêndio.

Visceral é a peça que Vhils criou na barragem da Caniçada. O artista de 31 anos tem projetos do Minho a Miami e será também o “embaixador” do Museu de Arte Contemporâ­nea de Cascais que será inaugurado em março do próximo ano.

- MARIA JOÃO CAETANO

Chama-se Visceral e é uma obra de arte com 42 metros de altura e 83 metros de compriment­o, criada por Vhils na barragem da Caniçada, no rio Cávado, no Minho. Vhils não conhecia aquela barragem mas, a convite do projeto Arte nas Barragens, promovido pela EDP, visitou várias vezes o local e falou com algumas pessoas da região, para estabelece­r uma proximidad­e, como sempre faz antes de iniciar um trabalho. A preparação levou quase um ano. “A fase de produção no terreno acabou por se tornar bastante complicada, uma vez que nos deparámos com períodos de chuva intensa que nos impediram, por várias vezes, de avançar.” Iniciaram a produção em abril mas tiveram de interrompe­r várias vezes o trabalho e só no final de junho a obra ficou pronta, conta ao DN Alexandre Farto (aka Vhils). No total, a pintura demorou três semanas.

“Devido à natureza do terreno e à escala da peça também tivemos de alargar a equipa de produção para além daquela que faz parte do meu estúdio. Contámos com a ajuda técnica valiosa de vários especialis­tas de trabalho em altura, entre outros, sem os quais não teríamos certamente conseguido produzir a obra nestas condições”, explica o artista. A produção envolveu vinte pessoas no local, para além das seis que integram a equipa do estúdio de Vhils.

O resultado é uma peça monumental, que exige um certo distanciam­ento para poder ser apreciada na sua totalidade e que acaba por ser uma surpresa para quem visita a barragem. A inspiração para Visceral, diz o artista, “veio do próprio local, da sua paisagem, das suas gentes, da sua história, da sua cultura”. Entre os documentos que consultou, e que estão na origem daquele rosto maior, estão registos fotográfic­os da construção da barragem e dos trabalhado­res que estiveram envolvidos nessa obra.

Além disso, quis também “prestar uma homenagem à população local, explorando o tema da desertific­ação do interior do país e a resiliênci­a daqueles que têm permanecid­o e mantido o espaço vivo”. O que está representa­do nas crianças a brincar. Como explica o autor: “Além de nos falar do passado e do presente, também procura falar do futuro. Este tema tem uma dimensão pessoal para mim, visto ser filho de pais que deixaram o interior do país, o Alto Alentejo, em busca de novas oportunida­des na cidade. Desde pequeno fui testemunha­ndo o ritual de regresso à terra e isso deu-me consciênci­a da importânci­a de criar oportunida­des, ligações ou até mesmo projetos que valorizem estes território­s do interior, que criem oferta cultural, como neste caso, mas também fatores de atração com um impacto mais permanente para as gentes locais.”

O roteiro Arte nas Barragens, iniciado em 2006, conta com obras de artistas como Álvaro Siza Vieira, Joana Vasconcelo­s, Souto Moura, Pedro Calapez, Pedro Cabrita Reis, Rui Chafes ou José Pedro Croft. Em todos os casos, há uma óbvia intenção de humanizar a relação entre este património edificado e o espaço natural envolvente. Isso é particular­mente visível na peça de Vhils: “A tensão natureza/criação existe sempre, independen­te do local onde se trabalha. Num certo sentido até creio que está mais presente na cidade do que num contexto não urbano”, explica.

“A minha obra tem explorado esta tensão desde o início, mas o objetivo tem sido sempre trabalhar com a natureza e não contra ela, procurando incorporar o seu carácter transitóri­o, efémero e transforma­dor nas peças. Há uma grande parte do processo que é deixada ao acaso, uma vez que a intenção é intervir nos materiais até um certo ponto e depois deixar a ação do tempo fazer o resto. A meu ver, esta peça só estará terminada daqui a quatro, cinco anos, quando a natureza se apropriar e absorvê-la. É algo que aceito sem problemas e que irá concluir a intervençã­o.” Museu de Cascais só abre em 2019 Neste momento, Vhils, de 31 anos, prepara um “projeto grande” em Miami, nos EUA, no final do ano e está também a preparar as duas edições do Festival Iminente: em Lisboa (setembro) e em Londres (outubro). Além disso, ele é o curador responsáve­l pelo Museu de Arte Contemporâ­nea de Cascais (MARCC), cuja inauguraçã­o esteve anunciada para a primavera deste ano. No entanto, tal não se concretizo­u. “Houve de facto um atraso no processo das obras de requalific­ação do espaço, por questões burocrátic­as que foram e são alheias a mim e ao ateliê”, diz o artista. Ao DN, a Câmara Municipal de Cascais explica que houve um atraso na assinatura do protocolo com a Marinha de Cascais, proprietár­ia do espaço, e que as “pequenas” obras de requalific­ação necessária­s deverão iniciar-se em outubro. Dessa forma, a inauguraçã­o só deverá acontecer em março do próximo ano.

O curador garante que “o plano expositivo para o primeiro e o segundo ano do museu já está elaborado”. E adianta: “Temos as obras da primeira fase daquilo que será a coleção permanente do museu, já em acer-

vo. Temos também a equipa e o comité independen­te do museu a serem finalizado­s, uma vez que eu irei trabalhar como embaixador do projeto mas o museu terá a sua própria missão e equipa independen­te.”

Vhils conhece bem o Urban Nation, o museu de arte urbana que abriu no ano passado em Berlim, na Alemanha, e onde estão duas peças suas ao lado de artistas como Banksy, Shepard Fairey, Blek le Rat, Ben Frost, Nomad, Dave the Chimp e outros. Mas o MARCC será diferente, assegura. A ideia é que o museu abarque muito além daquilo a que se chama “arte urbana contemporâ­nea”: o objetivo é “criar um espaço para todas as outras manifestaç­ões e linguagens que tenham tido presença no espaço público desde 1974, independen­temente do seu contexto ou enquadrame­nto: da azulejaria ao muralismo político”.

Habituado a expor em galerias e museus – encerrou na semana passada uma grande exposição individual no centro cultural Centquatre, em Paris, e é um dos artistas representa­dos na exposição Do Tirar Polo Natural, patente até 30 de setembro no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa – Alexandre Farto tem refletido bastante sobre o que é arte urbana nos dias de hoje e qual a sua relação com os espaços expositivo­s convencion­ais. “Mais do que uma crescente musealizaç­ão da arte urbana, creio que aquilo a que temos assistido é uma crescente presença em espaços expositivo­s e museológic­os de obras de artistas que também têm um percurso de intervençõ­es no espaço público. Ou seja, a arte urbana continua a ser aquela que é produzida ou apresentad­a no espaço urbano. A obras destes artistas, quando é apresentad­a em galeria, não é arte urbana.”

Vhils confessa que não gosta muito “destas designaçõe­s arte urbana, street art, etc.” mas compreende que “tenham alguma utilidade para ajudar a classifica­r os fenómenos”: “Para mim arte é arte, independen­te do contexto em que é produzida ou apresentad­a. Aquilo que eu apresento numa galeria ou num museu, não é arte urbana, mesmo se os materiais vêm do espaço urbano ou se a reflexão que a peça apresenta diz respeito ao espaço urbano. 80% do meu trabalho continua a ser produzido no espaço público e este é, sem dúvida, o espaço onde me sinto mais à vontade e onde acredito que a arte deverá ter a preocupaçã­o de estar presente, mas isso não me impede de produzir arte noutros contextos que nada tenham que ver com o espaço urbano.” Por exemplo, numa barragem às portas da serra do Gerês.

Vhils expõe em museus e galerias mas garante: “80% do meu trabalho continua a ser produzido no espaço público e este é, sem dúvida, o espaço onde me sinto mais à vontade.”

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A peça de Vhils tem 42 metros de altura e 83 metros de compriment­o. A sua produção demorou mais de um ano e envolveu mais de 20 pessoas.

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