A costura da memória
Não herdei de minha mãe, que em solteira foi costureira num alfaiate de luxo da Baixa de Lisboa, a vocação e o perfeccionismo no manuseio de agulhas e tesouras. Na idade de aprender, faltava-me a paciência e, sobretudo depois de certas leituras de adolescência, considerava tais artes coisas atentatórias do desenvolvimento intelectual e social da mulher.
O vocabulário dessas lições falhadas ficou-me, todavia, como borras de café assentes no fundo da cafeteira: pesponto, alinhavo, chuleio. Os nomes dos tecidos evocam ainda as idas às retrosarias da Baixa, com os balcões compridos de madeira, a minha avó a sentar-me em cima dos ditos balcões, os sapatos brancos da criança insuportável que eu era a bater de impaciência contra a madeira: um metro de cambraia, mais outro de cetim, um rolo de dracalon para enchimentos impecáveis, sem gomos. Hoje, tantos anos já sem mãe e avó, a ida à costureira, seja para apertar um vestido ou subir uma bainha, já não desperta impaciência, mas a ternura de continuar rituais de uma Lisboa que já não há (embora a Madonna ache que sim) e de reencontrar a feminilidade das minhas queridas antepassadas. Como se a costura, mais do que unir duas partes de tecido, ligasse duas margens do tempo: o passado e o presente.
Com os anos, desci da minha arrogância geracional para compreender que, como demonstra a espanhola Maria Dueñas no romance O Tempo entre Costuras, coser, cortar, reconstruir uma peça de roupa é muito mais do que parece. E recordo as histórias do velho ateliê de “o Carnaval de Veneza, sito na Rua dos Sapateiros, nos anos 1950, quando a minha mãe e as colegas, às ordens de uma mestra implacável, cortavam as camisas brancas de Arlindo Vicente, distinto advogado de Lisboa e candidato da Oposição Democrática nas presidenciais de 1958. Ou quando, pelo contrário, bordavam o monograma de Salazar em lenços de algodão. “Só tenho pena que a linha não fosse venenosa”, acrescentava ela, mulher que foi rebelde até ao fim dos seus dias, a sua inteligência em permanente conflito com o estatuto de doméstica imposto por um casamento precoce. E eu só tenho pena, mãe, de não ter compreendido a tempo que eras muito mais do que esse destino a que um Portugal salazarento, fascinado pela mediocridade e profundamente machista, te condenou.
Jornalista