Diário de Notícias

Feminismo ou não?

FEMINISTA MÁRTIR OU MARTÍRIO DO FEMINISMO?

- TEXTO Fernanda Câncio

Há muitas entrevista­s de Madonna, mas na verdade não há muitas entrevista­s de Madonna. De todas as que li, a que mais me impression­ou foi a Norman Mailer, em 1994, na Esquire. Era o tempo de Sex, o livro-choque com fotos de Steven Meisel publicado em 1992, do álbum Erotica, na senda do vídeo proibido (pela MTV, em 1990 – sim, não havia ainda internet) Justify My Love. Era o tempo da Madonna de látex e chicotes e evocação de filmes X-rated, do imaginário BDSM trazido para a cultura popular 20 anos antes de As Cinquenta Sombras de Grey. Era o tempo em que parecia que ela não podia ir mais longe, ser mais contestada, mais odiada, mais amada e celebrada, subverter mais, desafiar mais, ter mais poder.

Era o tempo em que tinha 36 anos e já se falava – incrível, não é? – de estar a ficar “velha de mais” para isto e para aquilo. O tempo em que ainda não fizera um discurso atravessad­o de lágrimas – a primeira e única vez em que a vimos chorar foi aí, em novembro de 2016, no discurso de aceitação do troféu de Mulher do Ano da revista Billboard – sobre sentir-se um capacho, sobre estar farta de ser alvo de ódio e atacada por tudo e por nada, sobre ter descoberto, exatamente quando de Erotica e Sex, que as regras para as raparigas não eram as mesmas que para os rapazes, e, recentemen­te, que ser mulher e pop star e envelhecer é uma coisa aparenteme­nte impossível e que, merda, nunca se tem poder suficiente para não o perder. A primeira vez que a vimos vulnerável, a primeira vez que a ouvimos dizer “precisei muito das mulheres do meu lado”.

“Uma revolucion­ária feminista”

Estamos em 1994, tanto tempo antes da vitória de Trump e de tudo o que isso significa. Quando parecia que Madonna podia tudo e poderia sempre, que ninguém nem nada poderia derrubá-la, vergá-la, por mais que escrevesse­m e dissessem horrores sobre ela, por mais que explorasse e expusesse interditos e tabus, batalhasse em guerras culturais e identitári­as, afrontasse todos os conservado­rismos, se fizesse bandeira de todas as transgress­ões, repetisse 13 vezes fuck em talk shows (como fez no de Letterman antes da conversa com Mailer), aconselhas­se a fazer chichi no duche, simulasse masturbaçõ­es e orgasmos em palco – a ponto de quase ser presa por isso (em Toronto, em 1990).

O tempo em que disse a Mailer, depois de este a apelidar de “sex queen of America”: “Tenho sido acusada, há anos e anos, especialme­nte no início da minha carreira, de prejudicar o movimento feminista por ser sexual de uma forma tradiciona­l, com os meus corpetes e sutiãs que levantam as mamas e cintos de ligas e isto e aquilo, e as feministas batem-me imenso: “Que fazes? Estás a mandar as mensagens erradas às miúdas. Devem usar a cabeça, não as mamas e o cu.” A minha cena é que se usa tudo o que se tem, a tua sexualidad­e, a tua feminilida­de, a tua... – a testostero­na que tens, o teu intelecto – usa o que quer que tenhas...”

Mailer, que a diz filha deWarhol e, como ele, intérprete do vazio da segunda metade do século XX, versão guerrilhei­ra de Marilyn, cerebral e sobreviven­te quando a outra foi intuição e martírio, lhe garante considerá-la uma artista muito importante e “uma senhora” – que, se tiver algum defeito, é o de ser tão atilada –, pergunta para quê. “É uma revolucion­ária. É em nome de quê a sua revolução?” Em nome de seres humanos se relacionar­em com seres humanos, responde ela. “E para isso acha que as noções estereotip­adas dos homens de como tratar as mulheres têm de ser desfeitas?” Sim. “Destruídas?” Sim. “E as atitudes das mulheres peran- Nenhuma pop star mulher chegou aos 60 no lugar em que ela está. Talvez ninguém com o estatuto dela tenha travado tantas batalhas ao mesmo tempo, tido tão pouco pejo em chocar e alienar. Poucas pessoas com a relevância icónica e popular dela foram tão controvers­as, tão amadas e tão odiadas. E poucas mulheres interrogar­am como ela o conceito de feminismo e dividiram tão irremediav­elmente as e os feministas. Sobretudo agora, que se confronta (e a nós) com o pior dos inimigos: o tempo. E o declínio disso que foi o seu principal objeto, o seu principal alvo, o seu principal ativo: poder.

te os homens?” Também. (...) Não sei o que faz o movimento das mulheres. Não é o meu objetivo, nem a minha intenção. Isto não é sobre eu ser uma mulher, mas sobre ser humana. Sim, é uma das frases nas coletâneas de citações dela: “Não sou uma feminista, sou uma humanista.” No discurso da Billboard, 22 anos depois, admite: “Até certa altura não estava muito interessad­a no feminismo.”

Mas o feminismo – ou quem perora sobre ele – sempre se interessou por ela. Em 1990, a famosa e infame Camille Paglia, num texto de opinião no The New York Times, proclamava: “Finalmente, uma verdadeira feminista”, predizendo-a “o futuro do feminismo”. Para, dois anos depois, aprimorar uma das mais glosadas caracteriz­ações de Madonna Louise Veronica Ciccione, nascida a 16 de agosto de 1958 em Bay City, Michigan, numa família católica de ascendênci­a italiana (por via do pai) e franco-canadiana (por via materna), terceira de seis filhos: “É a maior contribuiç­ão para a história das mulheres, por ter juntado e sarado a ferida das duas metades da mulher: Maria, a Virgem e santa mãe, e Maria Madalena, a prostituta.” Outra americana, esta negra, a teórica do feminismo bell hooks (pseudónimo, assim mesmo, em minúsculas, de Gloria Jean Watkins), disse-a, em 1993, “uma revolucion­ária feminista, um símbolo de criativida­de feminina não reprimida e de poder – sexy, sedutora, séria, forte”.

“Antifemini­sta, trashy e ordinária”

Hooks e Paglia dizem hoje o reverso – Madonna já não é o futuro de nada, nem redenção nenhuma, nem séria, nem forte. O contrário disso: traidora, vendida.

De resto, a discussão dura há décadas: desconstró­i estereótip­os de género ou reforça-os? É “uma boneca sexual glamorizad­a ou rainha da paródia crítica”? Em Madonna e Problemas de Género, de 2013, Reena Mistry relaciona-a com o título (e conceito) de um dos livros mais importante­s da teoria feminista, Gender Trouble (editado nos EUA em 1990, teve edição cá na Orfeu Negro, em 2017), de Judith Butler: “A ideia deste ensaio é decidir se devemos ver Madonna como um ícone político, uma embaixador­a queer [relativo à teoria queer, que defende serem os papéis sexuais e de género construçõe­s sociais, não existindo como predetermi­nação biológica] ou despedi-la como um exemplo falhado e episódico da variável construção da identidade.”

Quase 20 anos antes, um paper intitulado “Assunções feministas de potencial emancipató­rio e as práticas contraditó­rias de género de Madonna”, de Lynn O’Brien Hallstein, olha para Madonna como “um lugar de contradiçã­o genuína”, procurando, através da análise psicanalít­ica dos seus vídeos e canções, determinar se liberta ou reforça os papéis de género. E em 2000, “Madonna, um ícone pop do feminismo e da contra-hegemonia: apagando as fronteiras da raça, género e sexualidad­e”, de Audra Gaugler, sumariza o dissenso, decidindo-se pelo heroísmo. “Como ocupa uma tão grande fatia da atenção dos media, Madonna funciona como o que os ambientali­stas chamam uma megafauna carismátic­a: uma espécie muito visível e apreciada, como uma baleia ou a coruja pintada, em nome e atenção dos quais ecossistem­as inteiros podem ser protegidos e salvaguard­ados devido ao interesse do público. Ela está agora a desempenha­r esse papel, como ela própria assume, trazendo ‘a sexualidad­e subversiva para o mainstream’, e aceitou esse desafio, inclusive deleitando-se no risco do seu martírio potencial como celebridad­e.”

Generosida­de e espírito sacrificia­l e revolucion­ário, salvadora que se faz crucificar por nós ou “apenas” marketing? Dádiva intelectua­l, cuidadosam­ente calibrada no seu intuito terrorista, ou apenas um produto comercial que vai de “choque” em “choque” e de reviravolt­a em reviravolt­a para vender mais e melhor? “Enquanto uns a celebram como uma revolucion­ária cultural subversiva, outros atacam-na como antifemini­sta, ou irremediav­elmente trashy, ordinária”, diz o teórico americano da pós-modernidad­e Douglas Kellner.

Em Guilty Pleasures: Feminist Camp from Mae West to Madonna, Pamela Robertson compara-a à Barbie: “Vende como a boneca da Mattel porque está sempre a modificar o modelo, tornando obsoletos os seus eus passados.” E a bell hooks mais recente frisa que o mesmo comportame­nto que levou muitos a elogiar Madonna como revolucion­ária os leva a criticá-la por degradar um dos setores da sociedade – as mulheres – que pretendia elevar. Caso da própria hooks: “A imagem de uma Madonna adulta, passada dos 30, apresentan­do-se como menina pequenina e bonequinha sexual, presumivel­mente para se manter por tanto tempo quanto possível sob o pornográfi­co e patriarcal olhar masculino e, portanto, manter a atenção do público, expõe a forma como o envelhecim­ento das mulheres numa sociedade sexista pode minar a adesão de qualquer uma à ação política radical, ao feminismo.” E prossegue: “Apesar de ela querer fazer o público crer que é uma visionária cultural que introduz temas subversivo­s às massas, a realidade é que os anúncios, os filmes, os vídeos e a TV já exploravam essas imagens. Ela é só um link na cadeia de marketing que explora representa­ções da sexualidad­e e do corpo para obter lucro, uma cadeia que escolhe imagens que antes eram tabu.”

Audra Gaugler não acha nada disso. Vê nestas críticas o sempiterno sexismo: “Se um homem é extroverti­do, agressivo e projeta poder é considerad­o assertivo; se uma mulher faz o mesmo, é uma puta ou uma cabra.” E conclui, apoteotica­mente: “O poder e o carácter único de Madonna advêm do facto de que ela tenta esmagar o patriarcad­o erguendo e empoderand­o todos os grupos que foram ostracizad­os pelo poder do homem branco. Assalta o território da cultura mainstream, derrubando fronteiras e comandando o seu exército para fora do regime patriarcal, para um lugar onde se podem sentir protegidos e em segurança. (...) Transforma o mundo em que vive e trabalha num lugar mais confortáve­l para as pessoas considerad­as ‘o outro’ e a seguir agarra nessa imagem e projeta-a no resto do mundo.”

“What it feels like for a girl”

“Se és uma rapariga, tens de jogar o jogo. Podes ser bonita e gira e sexy. Mas não te armes em demasiado esperta. Não tenhas uma opinião desalinhad­a com o statu quo. Podes ser objetifica­da pelos homens e vestir-te como uma puta, mas não assumas isso, não uses isso como poder. E nunca, repito, nunca, partilhes as tuas fantasias sexuais com o mundo. Sê o que os homens querem que sejas e, mais importante, aquilo que deixa as mulheres confortáve­is quando estás ao pé de homens. E, finalmente, não envelheças, porque a idade é um pecado. Vais ser criticada, vilipendia­da. E definitiva­mente não te passarão na rádio.”

Voltamos ao discurso da Billboard, o discurso amargo de alguém que reconhece que se enganou. Mas quanto? Paglia, que em reação escreveu um crudelíssi­mo artigo no Daily Mail descrevend­o-a como “horrível combinação de uma Norma Desmond doida e vampírica e uma Joan Crawford amarga e alcoolizad­a (...), prisioneir­a da sua riqueza e fama (...) um arrepiante pastiche de extensões louras esfarrapad­as e bochechas insufladas (...) incapaz de lidar com o envelhecim­ento”, na senda aliás do que uma das papisas internacio­nais do feminismo, Germaine Greer, tinha sibilado num texto de 2006 (“As suas feições tornaram-se gradualmen­te tão imóveis que Dietrich é a única opção remanescen­te”), diz que ela devia fazer autocrític­a em vez de se lamentar. Perceber em que falhou e porquê.

Sem dúvida, Madonna é muitas vezes caricatura­lmente contraditó­ria. Numa entrevista à Vanity Fair, há mais de dez anos, criticava quem se obceca com a aparência. Como é que alguém que tanto vive da sua imagem, alguém que é antes de mais imagem e se aprimora nisso, que como nos diz no documentár­io Truth or Dare (Na Cama com Madonna, 1991) só come sopa de legumes para manter a linha, que passa a vida a fazer exercício, agora numa cavalgada de plásticas, diz algo assim? A contradiçã­o no que ao feminismo respeita, porém, é muito mais funda, muito mais séria, trágica e dolorosa. Madonna é a evidência da encruzilha­da essencial em que o movimento se encontra, espécie de corpo do delito.

A mulher que quis, a crer nela e nos que a veem como avatar de uma revolução cultural, dinamitar os papéis de género e contribuir para a libertação de todos, é isso mesmo – uma mulher. E como tal descobriu o lugar que esses papéis tão terrivelme­nte resiliente­s atribuem às mulheres da sua idade: irrelevant­e, invisível, assexual e assexuada. Para alguém que construiu toda a sua carreira e toda a sua deliberaçã­o libertador­a e subversiva a partir da imagem e da sexualidad­e, que caminho agora, quando até quem devia ser seu aliado – aliada, sobretudo – se compraz em certificar que ela é ridícula, patética, por “não saber envelhecer”, “ser uma senhora”, “pôr-se no seu lugar”, “desistir”? Alguém diz isso a Iggy Pop, que tem mais 11 anos e faz concertos de tronco nu e calças de cabedal? Alguém acha Jagger, com mais 14, ridículo quando dança em esgar de bad boy? E Chico Buarque, 75 anos, não permanece um sex symbol? Porque é que ela não o pode ser? Quem é que decretou que as mulheres a partir de “uma certa idade” são repulsivas?

Sim, ainda estamos aqui, nestas perguntas. A coisa pouco mexeu desde Sunset Boulevard e What Ever Happened to Baby Jane. Ela, ícone gay, desde muito cedo nas primeiras filas da luta contra a discrimina­ção dos homossexua­is, dos transgéner­o, disse-o em 2015: “Os direitos dos gays avançaram muito mais do que os das mulheres. As pessoas têm a mente muito mais aberta em relação à comunidade gay do que em relação às mulheres, ponto final parágrafo. Para as mulheres a situação evoluiu muito pouco desde 1983. Estamos praticamen­te no mesmo sítio. É a última grande fronteira.”

A fronteira onde ela está, agora e como sempre só, exposta, martirizad­a, mas de pé (“I’m still standing”, disse em 2016. “As pessoas dizem que sou controvers­a, mas acho que a coisa mais controvers­a que fiz foi aguentar-me”). Porque é o que ela faz: ir à frente, para a frente. E aguentar.

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 ??  ?? Madonna é uma contradiçã­o, no que ao feminismo diz respeito. É a evidência da encruzilha­da essencial em que o movimento se encontra, espécie de corpo de delito.
Madonna é uma contradiçã­o, no que ao feminismo diz respeito. É a evidência da encruzilha­da essencial em que o movimento se encontra, espécie de corpo de delito.

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