Feminismo ou não?
FEMINISTA MÁRTIR OU MARTÍRIO DO FEMINISMO?
Há muitas entrevistas de Madonna, mas na verdade não há muitas entrevistas de Madonna. De todas as que li, a que mais me impressionou foi a Norman Mailer, em 1994, na Esquire. Era o tempo de Sex, o livro-choque com fotos de Steven Meisel publicado em 1992, do álbum Erotica, na senda do vídeo proibido (pela MTV, em 1990 – sim, não havia ainda internet) Justify My Love. Era o tempo da Madonna de látex e chicotes e evocação de filmes X-rated, do imaginário BDSM trazido para a cultura popular 20 anos antes de As Cinquenta Sombras de Grey. Era o tempo em que parecia que ela não podia ir mais longe, ser mais contestada, mais odiada, mais amada e celebrada, subverter mais, desafiar mais, ter mais poder.
Era o tempo em que tinha 36 anos e já se falava – incrível, não é? – de estar a ficar “velha de mais” para isto e para aquilo. O tempo em que ainda não fizera um discurso atravessado de lágrimas – a primeira e única vez em que a vimos chorar foi aí, em novembro de 2016, no discurso de aceitação do troféu de Mulher do Ano da revista Billboard – sobre sentir-se um capacho, sobre estar farta de ser alvo de ódio e atacada por tudo e por nada, sobre ter descoberto, exatamente quando de Erotica e Sex, que as regras para as raparigas não eram as mesmas que para os rapazes, e, recentemente, que ser mulher e pop star e envelhecer é uma coisa aparentemente impossível e que, merda, nunca se tem poder suficiente para não o perder. A primeira vez que a vimos vulnerável, a primeira vez que a ouvimos dizer “precisei muito das mulheres do meu lado”.
“Uma revolucionária feminista”
Estamos em 1994, tanto tempo antes da vitória de Trump e de tudo o que isso significa. Quando parecia que Madonna podia tudo e poderia sempre, que ninguém nem nada poderia derrubá-la, vergá-la, por mais que escrevessem e dissessem horrores sobre ela, por mais que explorasse e expusesse interditos e tabus, batalhasse em guerras culturais e identitárias, afrontasse todos os conservadorismos, se fizesse bandeira de todas as transgressões, repetisse 13 vezes fuck em talk shows (como fez no de Letterman antes da conversa com Mailer), aconselhasse a fazer chichi no duche, simulasse masturbações e orgasmos em palco – a ponto de quase ser presa por isso (em Toronto, em 1990).
O tempo em que disse a Mailer, depois de este a apelidar de “sex queen of America”: “Tenho sido acusada, há anos e anos, especialmente no início da minha carreira, de prejudicar o movimento feminista por ser sexual de uma forma tradicional, com os meus corpetes e sutiãs que levantam as mamas e cintos de ligas e isto e aquilo, e as feministas batem-me imenso: “Que fazes? Estás a mandar as mensagens erradas às miúdas. Devem usar a cabeça, não as mamas e o cu.” A minha cena é que se usa tudo o que se tem, a tua sexualidade, a tua feminilidade, a tua... – a testosterona que tens, o teu intelecto – usa o que quer que tenhas...”
Mailer, que a diz filha deWarhol e, como ele, intérprete do vazio da segunda metade do século XX, versão guerrilheira de Marilyn, cerebral e sobrevivente quando a outra foi intuição e martírio, lhe garante considerá-la uma artista muito importante e “uma senhora” – que, se tiver algum defeito, é o de ser tão atilada –, pergunta para quê. “É uma revolucionária. É em nome de quê a sua revolução?” Em nome de seres humanos se relacionarem com seres humanos, responde ela. “E para isso acha que as noções estereotipadas dos homens de como tratar as mulheres têm de ser desfeitas?” Sim. “Destruídas?” Sim. “E as atitudes das mulheres peran- Nenhuma pop star mulher chegou aos 60 no lugar em que ela está. Talvez ninguém com o estatuto dela tenha travado tantas batalhas ao mesmo tempo, tido tão pouco pejo em chocar e alienar. Poucas pessoas com a relevância icónica e popular dela foram tão controversas, tão amadas e tão odiadas. E poucas mulheres interrogaram como ela o conceito de feminismo e dividiram tão irremediavelmente as e os feministas. Sobretudo agora, que se confronta (e a nós) com o pior dos inimigos: o tempo. E o declínio disso que foi o seu principal objeto, o seu principal alvo, o seu principal ativo: poder.
te os homens?” Também. (...) Não sei o que faz o movimento das mulheres. Não é o meu objetivo, nem a minha intenção. Isto não é sobre eu ser uma mulher, mas sobre ser humana. Sim, é uma das frases nas coletâneas de citações dela: “Não sou uma feminista, sou uma humanista.” No discurso da Billboard, 22 anos depois, admite: “Até certa altura não estava muito interessada no feminismo.”
Mas o feminismo – ou quem perora sobre ele – sempre se interessou por ela. Em 1990, a famosa e infame Camille Paglia, num texto de opinião no The New York Times, proclamava: “Finalmente, uma verdadeira feminista”, predizendo-a “o futuro do feminismo”. Para, dois anos depois, aprimorar uma das mais glosadas caracterizações de Madonna Louise Veronica Ciccione, nascida a 16 de agosto de 1958 em Bay City, Michigan, numa família católica de ascendência italiana (por via do pai) e franco-canadiana (por via materna), terceira de seis filhos: “É a maior contribuição para a história das mulheres, por ter juntado e sarado a ferida das duas metades da mulher: Maria, a Virgem e santa mãe, e Maria Madalena, a prostituta.” Outra americana, esta negra, a teórica do feminismo bell hooks (pseudónimo, assim mesmo, em minúsculas, de Gloria Jean Watkins), disse-a, em 1993, “uma revolucionária feminista, um símbolo de criatividade feminina não reprimida e de poder – sexy, sedutora, séria, forte”.
“Antifeminista, trashy e ordinária”
Hooks e Paglia dizem hoje o reverso – Madonna já não é o futuro de nada, nem redenção nenhuma, nem séria, nem forte. O contrário disso: traidora, vendida.
De resto, a discussão dura há décadas: desconstrói estereótipos de género ou reforça-os? É “uma boneca sexual glamorizada ou rainha da paródia crítica”? Em Madonna e Problemas de Género, de 2013, Reena Mistry relaciona-a com o título (e conceito) de um dos livros mais importantes da teoria feminista, Gender Trouble (editado nos EUA em 1990, teve edição cá na Orfeu Negro, em 2017), de Judith Butler: “A ideia deste ensaio é decidir se devemos ver Madonna como um ícone político, uma embaixadora queer [relativo à teoria queer, que defende serem os papéis sexuais e de género construções sociais, não existindo como predeterminação biológica] ou despedi-la como um exemplo falhado e episódico da variável construção da identidade.”
Quase 20 anos antes, um paper intitulado “Assunções feministas de potencial emancipatório e as práticas contraditórias de género de Madonna”, de Lynn O’Brien Hallstein, olha para Madonna como “um lugar de contradição genuína”, procurando, através da análise psicanalítica dos seus vídeos e canções, determinar se liberta ou reforça os papéis de género. E em 2000, “Madonna, um ícone pop do feminismo e da contra-hegemonia: apagando as fronteiras da raça, género e sexualidade”, de Audra Gaugler, sumariza o dissenso, decidindo-se pelo heroísmo. “Como ocupa uma tão grande fatia da atenção dos media, Madonna funciona como o que os ambientalistas chamam uma megafauna carismática: uma espécie muito visível e apreciada, como uma baleia ou a coruja pintada, em nome e atenção dos quais ecossistemas inteiros podem ser protegidos e salvaguardados devido ao interesse do público. Ela está agora a desempenhar esse papel, como ela própria assume, trazendo ‘a sexualidade subversiva para o mainstream’, e aceitou esse desafio, inclusive deleitando-se no risco do seu martírio potencial como celebridade.”
Generosidade e espírito sacrificial e revolucionário, salvadora que se faz crucificar por nós ou “apenas” marketing? Dádiva intelectual, cuidadosamente calibrada no seu intuito terrorista, ou apenas um produto comercial que vai de “choque” em “choque” e de reviravolta em reviravolta para vender mais e melhor? “Enquanto uns a celebram como uma revolucionária cultural subversiva, outros atacam-na como antifeminista, ou irremediavelmente trashy, ordinária”, diz o teórico americano da pós-modernidade Douglas Kellner.
Em Guilty Pleasures: Feminist Camp from Mae West to Madonna, Pamela Robertson compara-a à Barbie: “Vende como a boneca da Mattel porque está sempre a modificar o modelo, tornando obsoletos os seus eus passados.” E a bell hooks mais recente frisa que o mesmo comportamento que levou muitos a elogiar Madonna como revolucionária os leva a criticá-la por degradar um dos setores da sociedade – as mulheres – que pretendia elevar. Caso da própria hooks: “A imagem de uma Madonna adulta, passada dos 30, apresentando-se como menina pequenina e bonequinha sexual, presumivelmente para se manter por tanto tempo quanto possível sob o pornográfico e patriarcal olhar masculino e, portanto, manter a atenção do público, expõe a forma como o envelhecimento das mulheres numa sociedade sexista pode minar a adesão de qualquer uma à ação política radical, ao feminismo.” E prossegue: “Apesar de ela querer fazer o público crer que é uma visionária cultural que introduz temas subversivos às massas, a realidade é que os anúncios, os filmes, os vídeos e a TV já exploravam essas imagens. Ela é só um link na cadeia de marketing que explora representações da sexualidade e do corpo para obter lucro, uma cadeia que escolhe imagens que antes eram tabu.”
Audra Gaugler não acha nada disso. Vê nestas críticas o sempiterno sexismo: “Se um homem é extrovertido, agressivo e projeta poder é considerado assertivo; se uma mulher faz o mesmo, é uma puta ou uma cabra.” E conclui, apoteoticamente: “O poder e o carácter único de Madonna advêm do facto de que ela tenta esmagar o patriarcado erguendo e empoderando todos os grupos que foram ostracizados pelo poder do homem branco. Assalta o território da cultura mainstream, derrubando fronteiras e comandando o seu exército para fora do regime patriarcal, para um lugar onde se podem sentir protegidos e em segurança. (...) Transforma o mundo em que vive e trabalha num lugar mais confortável para as pessoas consideradas ‘o outro’ e a seguir agarra nessa imagem e projeta-a no resto do mundo.”
“What it feels like for a girl”
“Se és uma rapariga, tens de jogar o jogo. Podes ser bonita e gira e sexy. Mas não te armes em demasiado esperta. Não tenhas uma opinião desalinhada com o statu quo. Podes ser objetificada pelos homens e vestir-te como uma puta, mas não assumas isso, não uses isso como poder. E nunca, repito, nunca, partilhes as tuas fantasias sexuais com o mundo. Sê o que os homens querem que sejas e, mais importante, aquilo que deixa as mulheres confortáveis quando estás ao pé de homens. E, finalmente, não envelheças, porque a idade é um pecado. Vais ser criticada, vilipendiada. E definitivamente não te passarão na rádio.”
Voltamos ao discurso da Billboard, o discurso amargo de alguém que reconhece que se enganou. Mas quanto? Paglia, que em reação escreveu um crudelíssimo artigo no Daily Mail descrevendo-a como “horrível combinação de uma Norma Desmond doida e vampírica e uma Joan Crawford amarga e alcoolizada (...), prisioneira da sua riqueza e fama (...) um arrepiante pastiche de extensões louras esfarrapadas e bochechas insufladas (...) incapaz de lidar com o envelhecimento”, na senda aliás do que uma das papisas internacionais do feminismo, Germaine Greer, tinha sibilado num texto de 2006 (“As suas feições tornaram-se gradualmente tão imóveis que Dietrich é a única opção remanescente”), diz que ela devia fazer autocrítica em vez de se lamentar. Perceber em que falhou e porquê.
Sem dúvida, Madonna é muitas vezes caricaturalmente contraditória. Numa entrevista à Vanity Fair, há mais de dez anos, criticava quem se obceca com a aparência. Como é que alguém que tanto vive da sua imagem, alguém que é antes de mais imagem e se aprimora nisso, que como nos diz no documentário Truth or Dare (Na Cama com Madonna, 1991) só come sopa de legumes para manter a linha, que passa a vida a fazer exercício, agora numa cavalgada de plásticas, diz algo assim? A contradição no que ao feminismo respeita, porém, é muito mais funda, muito mais séria, trágica e dolorosa. Madonna é a evidência da encruzilhada essencial em que o movimento se encontra, espécie de corpo do delito.
A mulher que quis, a crer nela e nos que a veem como avatar de uma revolução cultural, dinamitar os papéis de género e contribuir para a libertação de todos, é isso mesmo – uma mulher. E como tal descobriu o lugar que esses papéis tão terrivelmente resilientes atribuem às mulheres da sua idade: irrelevante, invisível, assexual e assexuada. Para alguém que construiu toda a sua carreira e toda a sua deliberação libertadora e subversiva a partir da imagem e da sexualidade, que caminho agora, quando até quem devia ser seu aliado – aliada, sobretudo – se compraz em certificar que ela é ridícula, patética, por “não saber envelhecer”, “ser uma senhora”, “pôr-se no seu lugar”, “desistir”? Alguém diz isso a Iggy Pop, que tem mais 11 anos e faz concertos de tronco nu e calças de cabedal? Alguém acha Jagger, com mais 14, ridículo quando dança em esgar de bad boy? E Chico Buarque, 75 anos, não permanece um sex symbol? Porque é que ela não o pode ser? Quem é que decretou que as mulheres a partir de “uma certa idade” são repulsivas?
Sim, ainda estamos aqui, nestas perguntas. A coisa pouco mexeu desde Sunset Boulevard e What Ever Happened to Baby Jane. Ela, ícone gay, desde muito cedo nas primeiras filas da luta contra a discriminação dos homossexuais, dos transgénero, disse-o em 2015: “Os direitos dos gays avançaram muito mais do que os das mulheres. As pessoas têm a mente muito mais aberta em relação à comunidade gay do que em relação às mulheres, ponto final parágrafo. Para as mulheres a situação evoluiu muito pouco desde 1983. Estamos praticamente no mesmo sítio. É a última grande fronteira.”
A fronteira onde ela está, agora e como sempre só, exposta, martirizada, mas de pé (“I’m still standing”, disse em 2016. “As pessoas dizem que sou controversa, mas acho que a coisa mais controversa que fiz foi aguentar-me”). Porque é o que ela faz: ir à frente, para a frente. E aguentar.