Diário de Notícias

Ary Fogareiro

Viagem. No carro de um fogareiro também “entram empresário­s moralistas, entram frustraçõe­s, entram antiquário­s e fadistas e contradiçõ­es”

- Paula Freitas Ferreira

Veste sempre de preto e usa brinco. No táxi guarda um caderno de autógrafos e sabe de cor todos os poemas de Ary dos Santos. É o chauffeur de Lauro António, que passou o número e a graça a Alice Vieira. Conversa se o passageiro o quiser, oferece silêncio como quem cumpre um ritual, numa ética de motorista da Uber antes de existir concorrênc­ia.

É taxista e poeta, calhou bem ter sido muito parecido com José Carlos Ary, foi bênção pedirem-lhe para escrever as cartas de amor que os amigos enviavam às namoradas. “Tinha jeito para escrever”, acede, uma vergonha súbita porque não tem escrito, que diria o Ary verdadeiro?

O Ary Fogareiro existe, não há aqui outra verdade que possa estragar esta bela história, sei que ele existe e que assim se chama porque ele me disse. Insisto em saber o nome de batismo (Carlos), e é um pecado, pede-me logo em jeito de prece: “Mas, por favor, não me chame isso. Desculpe, é que não estou nada habituado.” Um nome próprio também pode ser um insulto. É Ary Fogareiro que lhe chamam no bairro da Serafina, é Ary para todos os amigos e Ary Fogareiro para os escritores, os poetas, os cineastas, a gente da cultura que ele tem “a grande felicidade”de transporta­r.

Eu não lhe vi o rosto, mas tenho a certeza de que sorriu quando disse “felicidade”, há sorrisos que se ouvem (o Ary diria isto?).

Já não escreve, 22 anos ao volante tiraram-lhe o tempo e a calma. Tem tento na língua até não ter – o Ary iria gostar dele, tenho a certeza, eu que nunca conheci o Ary mas que se me encontrass­e com ele ali ao Botequim à Graça parece-me que seria como se o conhecesse desde sempre –, o Ary Fogareiro só não se cala quando calha entrar um político no táxi. “Arraso-os.” Conte-me, peço, imitando-lhe o tom de oração.

“Entra o Narciso Miranda, e foi naquela altura do escândalo da corrupção, faço de propósito e começo a falar de Salazar, que naquele tempo era diferente, e que eu bem sei porque bebi água do Barroso.” A corrida tinha como destino a sede do PS, ao Rato, e, picado, Narciso Miranda terá começado a franzir o sobrolho: “Então mas nesse tempo era melhor?”

Veio-lhe o ácido do José Carlos à garganta, estava faminto de uma desculpa para atirar: “Não, porque eu sei o que é a água do Barroso – era a sopa que os pobres comiam e eu comi muita –, mas quando Salazar morreu só tinha 60 contos no banco.” Ary Fogareiro quer reforçar, afinal tem o nome de Ary dos Santos como alcunha: “Não tenho saudades nenhumas de Salazar nem desse tempo, mas tinha de lhe dizer aquilo.” Ainda me confidenci­a que, de todos, o poema de que mais gosta é o da Tourada. É que no carro de um fogareiro também “entram empresário­s moralistas, entram frustraçõe­s, entram antiquário­s e fadistas e contradiçõ­es e entra muito dólar, muita gente, que dá lucro aos milhões. E diz o inteligent­e, que acabaram as canções”.

Jornalista

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