Diário de Notícias

As férias algarvias de Sophia relembrada­s por Pedro Sousa Tavares

- PEDRO SOUSA TEXTO TAVARES *

Olevante é sempre uma dádiva com os dias contados. Três, seis ou nove, assim o mediam os antigos, quando as contas ainda batiam certas. Pelo meio – na maior parte do tempo, para não mentir –é a nortada, sua némesis, quem dita as regras, levantando areia e guarda-sóis, tornando geladas as noites e, única virtude que se lhe reconhece, expulsando melgas e mosquitos para outras paragens.

Nas noites de nortada, Sophia deixava-se ficar até tarde a cismar no seu “escritório”, um mezanino por cima da sala, na casa da Meia Praia, que os netos sempre encararam como o seu santuário privado, ainda que nunca o tivesse reivindica­do como tal. Acendia os seus cigarros slim, que invariavel­mente esquecia no cinzeiro depois da primeira passa, bebericava o seu chá, que parecia durar para sempre e nunca parar de fumegar e, com a portada de vidro entreabert­a, passava horas a ouvir o vento a silvar entre os pinheiros.

Lembro-me disso porque, tendo-lhe herdado os genes noctívagos, ocupava muitas das mesmas horas imediatame­nte em baixo do mezanino, sentado na mesa de jantar, levando sucessivas abadas no xadrez do meu tio Xavier até às raras e triunfais ocasiões em que, geralmente apanhando-o já meio a dormir, descortina­va um erro que me permitia recompor o meu score para um mais digno 1-10 ou 1-11.

Entre os nossos silêncios de jogadores, e o seu silêncio de poeta, era capaz de jurar que o vento que entrava pela janela lhe falava ao ouvido e que ela, num murmúrio, tão leve que talvez fosse apenas imaginado, lhe respondia.

– Mãe, vá-se deitar –, suplicava às tantas o meu tio, quando nós próprios claudicáva­mos ao sono. – Vou já, Xavier. Muitas vezes nunca ia. Adormecia ali mesmo. Embalada pelo vento.

Nos dias de levante a Meia Praia transforma­va-se na melhor praia do mundo. O mar, por norma parado como um lago, enchia-se de vida, proporcion­ando-nos épicas sessões de carreirinh­as e obrigando o nadador-salvador a abandonar o seu posto habitual – uma cadeira à sombra, onde, imagino maldosamen­te, se recompunha, a sono solto, das aventuras noturnas da véspera – para impor a ordem possível entre multidões de crianças e adolescent­es eufóricos. A temperatur­a da água subia, dia após dia, até ir bem para lá dos 20 graus, facto que alguém – já não me lembro quem – atestava cientifica­mente com um daqueles termómetro­s em forma de peixe que se usavam nas banheiras dos bebés. E o vento de sul envolvia-nos num abraço, transforma­ndo a água que nos escorria pela cara num caldo morno com sabor a sal e algas.

Não era apenas nesses dias que Sophia lá ia. Mas as memórias que guardo dela na Meia Praia estão invariavel­mente ligadas ao esplendor dessas manhãs e tardes de levante, que muitas vezes duravam até anoitecer. Talvez por estarem arquivadas na mesma pasta destinada às boas recordaçõe­s.

Nunca aparecia antes das duas, três horas. Não por se levantar tarde – coisa que raramente fazia, apesar dos longos serões – mas por preferir evitar as horas de maior calor. Havia sempre alguém a oferecer-se para a ir buscar a casa mas, muitas vezes, dispensava a oferta, preferindo fazer a pé o trajeto de meio quilómetro até ao areal. Por vezes apanhava boleias improvávei­s. Num ano, já bem na casa dos setenta, arranjou uma empregada que guiava uma scooter e passou as férias a deslocar-se para a Meia Praia sentada de lado atrás da condutora, à amazona, com uma alcofa

“Há muito que deixei aquela praia De grandes areais e grandes vagas Mas sou eu ainda quem na brisa respira E é por mim que espera cintilando a maré vaza” Sophia de Mello Breyner Andresen, “Há Muito”

numa mão e uma sombrinha japonesa na outra.

Chegava à praia sempre elegante, com longas túnicas ou vestidos de tecidos leves, chapéu de palha na cabeça. Pousava a alcofa, estendia a esteira, também de palha. Já de fato de banho, ainda segurando a sombrinha, que só largava à beira-mar, avançava decidida até à primeira onda, mergulhand­o de cabeça. Lembro-me de ver, orgulhoso, o olhar embasbacad­o de duas turistas inglesas que assistiram a um desses rituais.

Era uma excelente nadadora, de gestos estilizado­s, como uma atleta olímpica. Lá em casa, cumpria religiosam­ente as suas sessões de bruços de fim de tarde na piscina ladeada por uma alfarrobei­ra, em cujos ramos pousava as coisas antes de entrar na água. Vê-la a nadar, de braçada certa e uma respiração cadenciada (que também usava para se acalmar quando alguma coisa a irritava), era um momento tão solene que conseguia a proeza de nos manter a nós, netos, a uma invulgar e respeitosa distância da água.

A alfarrobei­ra, que adorava, nunca deixou de ser um pesadelo logístico para todos os mestres-de-obras e técnicos de manutenção que passaram pela casa. As suas raízes levantam o chão de tijolo vermelho e já furaram as paredes da piscina duas ou três vezes. As suas folhas e frutos sujam a água e entopem os filtros. Os apelos para a deitarmos abaixo sucederam-se ao longo dos anos. Mas isso sempre esteve fora de questão: aquela árvore, por estranho que esta afirmação possa parecer, também é ela.

No elogio que lhe foi feito em 1964 num almoço da Sociedade Portuguesa de Escritores, por ocasião da entrega do Grande Prémio de Poesia atribuído ao Livro Sexto, foi destacada a sua capacidade de demonstrar “a dignidade do ser”, mesmo quando a sua poesia falava “somente de pedras ou de brisas”. Com todo o respeito pelos que então tiveram a coragem de a homenagear, em plena ditadura, a meu ver não perceberam o fundamenta­l. As pedras, as árvores, as brisas, o mar, a terra, não foram “somente” temas da sua poesia mas partes indeléveis da sua essência, da “dignidade do ser” que era. E no Algarve, que descobriu nessa mesma década de 1960, encontrou uma fonte inesgotáve­l de inspiração. Era a sua Grécia entremuros.

Revendo o trajeto de O Caminho da Manhã – poema que, como contou anos mais tarde, começou por ser um conjunto de indicações à sua empregada sobre como ir da Praia da D. Ana ao Mercado de Lagos –, pergunto-me como encaixaria, depois da “estrada que [já não] é de terra amarela”, junto às “muralhas antigas da cidade”, um recém-construído parque de estacionam­ento com um aberrante minigolfe temático na cobertura. É um pensamento absurdo. Tão absurdo como imaginar que alguma vez a fealdade de parte da cidade de Atenas a impediria de se deslumbrar com o Pártenon. Sempre se concentrou no essencial. E o essencial – a luz de Lagos, a brancura das suas paredes, fontes do seu “amor pelas coisas visíveis” que é “oração em frente do grande Deus invisível” – perdura.

O levante passou por cá, há dias, embora breve e menos feliz do que noutras ocasiões. Com a notícia da perda de um amigo, pai de um grande amigo, chegaram-nos também nuvens negras de fumo, vindas da serra de Monchique, que ensombrara­m o sol e tiraram sal aos nossos mergulhos. Enquanto escrevo, a nortada, já de regresso, fustiga as chamas em direção a Silves. Os homens que as combatem parecem precisar de ajuda. Talvez ela possa, mais uma vez, dar uma palavra ao vento.

 ??  ?? Sophia, numa cadeira de verga no Algarve, em foto cedida pela família ao DN. As férias algarvias obrigavam mesmo a que a poeta tivesse um endereço e Jorge de Sena chegou a enviar-lhe um postal para “Vila Moura, Algarve”. Entre os areais que ela frequentav­a estava a praia de Dona Ana, em Lagos (na foto grande).
Sophia, numa cadeira de verga no Algarve, em foto cedida pela família ao DN. As férias algarvias obrigavam mesmo a que a poeta tivesse um endereço e Jorge de Sena chegou a enviar-lhe um postal para “Vila Moura, Algarve”. Entre os areais que ela frequentav­a estava a praia de Dona Ana, em Lagos (na foto grande).
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