Diário de Notícias

ARTES, FIGURAS E IDEIAS O CENTRO CULTURAL

- João Gobern TEXTO

Recua-se quase século e meio, até 27 de junho de 1871, para imaginar uma indignada e militante reunião no Café Central, no mesmo local em que depois se instalou a Livraria Sá da Costa: Eça de Queirós, Antero de Quental, Batalha Reis, Adolfo Coelho e Salomão Saragga partilham uma mesa para redigir um protesto, formal, veemente, furioso, contra o governo liderado pelo marquês de Ávila e Bolama. A razão da fúria? Nada menos do que a proibição das Conferênci­as do Casino, em que os temas polémicos anunciados, do socialismo às questões religiosas, não caíram bem ao executivo.

Perto dali, onde está hoje instalada a companhia de seguros Império, ficava o Café Marrare (ou Marrare do Polimento), a propósito do qual disse Júlio César Machado, um dos maiores olisipógra­fos: “Portugal era Lisboa, Lisboa era o Chiado e o Chiado era o Marrare.” Em contrapont­o, atribui-se a Ramalho Ortigão, parceiro quase esquecido de Eça e de Antero, a ideia de que tudo, “na nação”, dependia do que se pensava e dizia entre a Casa Havaneza e o Grémio Literário.

Para fechar este tríptico de cafés do Chiado, tornou-se incontorná­vel a “escala” n’A Brasileira, à porta da qual está – desde há mais de trinta anos – agora perenement­e sentado Fernando Pessoa. Em estátua, claro, da autoria de Lagoa Henriques. Tertúlias à parte, e não terão sido poucas nem enfadonhas, as paredes deste café, fundado em 1905 por Adriano Soares Teles do Vale (avô do cineasta Luís Galvão Teles), valeram, no entender de alguns estudiosos, “o primeiro museu de arte moderna” de Lisboa: a partir de 1925, por ali podiam ver-se obras de Almada Negreiros, Eduardo Viana, Jorge Barradas, Bernardo Marques e Stuart Carvalhais, entre outros. Quase 50 anos depois, em 1971, por força do tempo e dos fumos, esse “painel” foi rendido por outro, de que faziam parte António Palolo, Nikias Skapinakis, João Hogan, Eduardo Nery, Noronha da Costa e Vespeira, entre outros.

Naturalmen­te, as mesas de café não açambarcam o monopólio das atenções artísticas e culturais do Chiado, embora haja outras mesas dignas de registo, distribuíd­as por restaurant­es (o célebre Silva, o Mata, hoje substituíd­o pela Mundial, o Tavares), cervejaria­s (a Trindade, que ainda cai no “perímetro” de que aqui se trata) ou pastelaria­s “finas” (como a Benard, a Marques, que seria a favorita de Júlio Dantas, ou a Ferrari, na Rua Nova do Almada e desapareci­da nas chamas de há três décadas). Não se esqueçam, também, os hotéis, como o Bragança, que ficava na Rua Vítor Cordon e chegou a hospedar cabeças coroadas, ou o Borges, ainda em funcioname­nto.

Zona nevrálgica

Cumprida a abordagem mais mundana, talvez valha a pena localizarm­os a “área de influência” que está em causa e que, como é óbvio, transcende muito o largo dedicado ao eborense e seiscentis­ta António Ribeiro, conhecido como Poeta Chiado, cuja estátua fica vizinha da do seu contemporâ­neo Luís de Camões. A designação “Chiado” foi ganhando terreno, a começar pela Rua Garrett, desde o Largo de Camões até ao entroncame­nto que segue pela Rua do Carmo, para um lado, e para a Rua Nova do Almada, pelo outro. “Inclui” a Vítor Cordon e a Rua Ivens (onde, até há dois anos, funcionou a Rádio Renascença), o Largo de São Carlos e, no sentido “ascendente”, a Calçada do Sacramento, a Rua Serpa Pinto, troços das ruas da Misericórd­ia e do Alecrim, até – numa interpreta­ção mais “abrangente” – o Teatro da Trindade.

Séculos antes de por lá “passearem” Carlos da Maia, João da Ega e até o Dâmaso – o primeiro e o último para mais facilmente visitarem Maria Eduarda, que Eça “instalou” na Rua de São Francisco, atual Rua Ivens –, o “nosso” Chiado servia de porta, a de Santa Catarina, para atravessar a cerca fernandina (do século XIV), “via rápida” quase indispensá­vel para quem quisesse dirigir-se para ocidente, para Alcântara, para Belém e por aí. Foi zona de conventos, pelo menos cinco: São Francisco e Trindade, ambos do século XIII, Carmo, do centénio seguinte, Oratoriano­s de São Filipe Nery e Carmelitas Descalças de Santo Agostinho, do século XVII. Ainda hoje avultam quatro igrejas: a dos Mártires, que até mudou de localizaçã­o após o terramoto de 1755 e terá sido herdeira de um velho templo fundado por D. Afonso Henriques, a do Loreto (onde se reunia a aristocrac­ia), as do Sacramento e da Encarnação, mais recentes e com uma frequência mais “democrátic­a”.

No que mais diretament­e nos diz respeito, é também no Chiado que surge a universida­de portuguesa, quando o rei D. Dinis funda – a 1 de março de 1290 – o Estudo Geral de Lisboa, que funcionou na Calçada do Sacramento, depois rendido pelo Palácio Valadares e, ainda mais tarde, pela Escola Veiga Beirão.

Já no reinado de D. Maria II, por ali seriam fundadas a Biblioteca Pública e a Academia de Belas-Artes, em decreto publicado a 29 de outubro de 1836, e o Grémio Literário, criado por carta régia de 18 de abril de 1846. Entre os primeiros membros efetivos, figuravam os escritores Alexandre Herculano (número 1), Almeida Garrett, Rebelo da Silva e Mendes Leal, a que se juntaram, sem surpresa, muitos políticos da época, como Rodrigo da Fonseca – que redigiu os estatutos –, Fontes Pereira de Melo, Rodrigues Sampaio ou Sá da Bandeira. O Grémio mudou várias vezes de “casa” até se fixar, em 1875, no palacete do visconde de Loures. Ainda hoje se mantém ativo, tendo ganho, desde 1940, a “vizinhança” do Círculo Eça de Queirós (no Largo Rafael Bordalo Pinheiro).

Palco de estrelas

Com todo este “currículo”, o Chiado foi sempre um polo cultural de enorme importânci­a. E também um centro de acolhiment­o para as grandes vedetas internacio­nais, com destaque para a atriz francesa Sarah Bernhardt (1844-1923), que já era uma celebridad­e transnacio­nal quando, em 1882, passou pelo palco do Teatro Gymnásio (que ardeu em 1921), local onde iniciou a sua carreira o ator Francisco Taborda. No Teatro da República (antes D. Amélia, depois São Luiz), em 1912, os cinéfilos puderam aplaudir Max Linder (1883-1925), um dos primeiros mestres da sétima arte, que veio até à capital portuguesa acompanhar uma série de curtas-metragens por si realizadas e que eram complement­adas com uma sequência em palco. Linder aproveitou, inclusivam­ente, para filmar – como nos conta a estudiosa Margarida Calado – em Lisboa, num percurso que começa na Estação do Rossio e acaba à porta do teatro…

Há, de resto, a curiosidad­e de esta sala ter uma estreita ligação ao cinema, quando passou a chamar-se São Luiz: o primeiro filme a ser exibido foi o clássico Metropolis, de Fritz Lang,

acompanhad­o por uma orquestra de 15 músicos, em 1928. Depois, acolheria a estreia do primeiro filme sonoro português, A Severa, de Leitão de Barros (em 1931). De resto ali surgiria um episódico estúdio em que foram rodadas sequência de filmes como Ver e Amar (de Chianca de Garcia) e Maria do Mar (outra vez de Leitão de Barros). Segundo Margarida Calado, terá sido também ali que nasceu o projeto da Tóbis. E ainda serviu de “cenário” à I Conferênci­a Futurista, em 1917, com destaque para Almada Negreiros e Santa-Rita Pintor.

No Teatro de São Carlos, foram muitas e boas as estrelas internacio­nais que ajudaram a dar brilho ao Chiado – e a Lisboa, e a Portugal. Por todas, recorde-se aquela que a 27 de março de 1958 protagoniz­ava o primeiro serão com a La Traviata, de Verdi: Maria Callas. A beleza imponente do edifício levaria, também, a que o realizador Bille August utilizasse os exteriores para “dar vida” a um palácio chileno: o filme, que trouxe a Portugal Meryl Streep, Glenn Close ou Jeremy Irons, chama-se A Casa dos Espíritos (1993).

Amália, Vasco Santana e um duelo

Numa das mais fulgurante­s comédias da “idade de ouro” do cinema português, O Pai Tirano, o realizador António Lopes Ribeiro põe o seu irmão, Ribeirinho, em palpitaçõe­s e correrias entre os Armazéns do Grandella e a Perfumaria da Moda, quase de portas fronteiras na Rua do Carmo, por causa da vampe – e cinéfila – Tatão (Leonor Maia). Tudo sob o olhar “paternal” de Vasco Santana, que é o encenador do grupo de teatro Os Grandelinh­as e não pode perder o seu galã, o próprio Ribeirinho. Nem João Villaret, um declamador num papel de mudo (!), falta a esta festa lisboeta.

Hoje, na mesma rua, é hábito encontrar uma espécie de “loja móvel” – já designada como a “Carripana do Fado” –, base de delícias para os “garimpeiro­s” das antiguidad­es no género. Nada mais condizente com um percurso do Chiado que também atravessa a história do fado – afinal de contas, foi no prédio da Valentim de Carvalho (na Rua Nova do Almada) que a maior de sempre, Amália Rodrigues, realizou as suas primeiras gravações em Portugal (antes disso tinha gravado no Rio de Janeiro), em 1950. Esse estúdio utilizava um sistema em que o artista não tinha possibilid­ade de ouvir o que acabara de gravar, mas nem isso assustou Amália e todos os outros que por ali passaram, antes de a Valentim passar a usar o antigo Teatro Taborda para os registos, antes de fundar os estúdios de Paço de Arcos, em 1963.

O Chiado é também figura de canções. Dois exemplos, próximos no tempo: Leitaria Garrett, do disco com o mesmo título, lançado por Vitorino em 1984 (já no álbum anterior o cantor do Redondo viajara pela zona, com Cervejaria da Trindade). Não ocultando as referência­s diretas à Leitaria Garrett e à Pastelaria Marques começa assim: “No Chiado à tardinha, às vezes…” Três anos antes, os UHF de António Manuel Ribeiro estreavam-se em LP com À Flor da Pele, cujo primeiro êxito se chamava precisamen­te Rua do Carmo e referia “mulheres bonitas, subindo o Chiado”. Curiosamen­te, em ambos os álbuns referidos, Vitorino (Tragédia da Rua das Gáveas) e os UHF (Rapaz Caleidoscó­pio) também se aventuram pelo Bairro Alto. Mas essa seria outra história, até porque são vários os que distinguem o carácter mais institucio­nal, mais literato, do Chiado, e mais noctívago e transgress­or, para o Bairro Alto.

O Chiado, que foi a primeira zona da cidade a receber a iluminação a gás (em 1848), sempre acolheu lojas de moda “distintas” e livrarias notáveis (resistem a Bertrand e a Férin). Mas também inspirou muitos escritores, de que aqui se escolhem dois dos maiores, até pela rivalidade mantida hoje entre os mais acesos seguidores: Eça de Queirós e Camilo Castelo Branco. O primeiro, além de Os Maias (que teve um primeiro esboço na Rua das Flores mas, em “versão definitiva”, se mudou, como vimos, para a de São Francisco), deixou correr a pena pelo Chiado em diversas ocasiões, como em Alves & Cª ou em A Capital. Tido como um autor mais ligado ao norte do país – apesar de Eça ter nascido na Póvoa de Varzim –, Camilo também não mostrou medo a Lisboa e ao seu centro nevrálgico, retratado à maneira do escritor em Coisas Espantosas e em A Queda dum Anjo, por exemplo.

Mais apressado, menos esplendoro­so do que noutras eras, o Chiado continua a ser um verdadeiro “centro cultural”. Recuperou um museu (o de Arte Contemporâ­nea do Chiado), mantém nas suas fronteiras a sede do Centro Nacional de Cultura e, nos últimos tempos, até passou a receber artistas – como Sérgio Godinho e Rodrigo Leão – para concertos gratuitos de rua. Por outras palavras, como na canção, há mesmo “uma luz que nunca se apaga”.

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