Diário de Notícias

“Porque hei de eu ganhar menos do que um homem?”

Rita Blanco. Atriz, feminista, defensora da cultura, mas, acima de tudo, mãe. Rita Blanco lamenta a falta de tempo que é dada à arte e a incapacida­de dos portuguese­s de defenderem o seu património, mas mostra-se grata ao público que sempre a acarinhou.

- ANA BELA FERREIRA

É hora de almoço, mas como Rita Blanco não pode comer (tem uma colonoscop­ia marcada para o dia seguinte), acabamos por passar essas horas à conversa, naquele que é o seu jardim desde os 12 anos: no Museu de Arte Antiga, em Lisboa. “É o meu escritório” e é na sua árvore que responde às perguntas. Pelo meio hão de ouvir-se muitas gargalhada­s de uma atriz séria, mas que não se leva muito a sério. Para mostrar como fica sem graça perante as homenagens, ainda que “profundame­nte agradecida”, partilha com o DN a caricata história da sua condecoraç­ão pela República Francesa. E é por aí que começa a entrevista.

Estava agora a contar a história da sua condecoraç­ão pela República Francesa. Começamos já por aí.

Eu explico. Ao contrário do que eu própria digo, que acho mal os prémios, para mim própria, não para os outros, fico sempre muito envergonha­da, a achar que então toda a gente tinha direito a receber prémios, realmente também fico muito lisonjeada. Não é possível uma pessoa receber um prémio e ficar “eh que chatice”. Fica-se feliz, porque acho que os atores do que gostam mais na vida é que gostem deles – esta atriz, que eu não posso falar pelos outros. Quando recebi esta condecoraç­ão do Estado francês, recebi uma carta primeiro a dar os parabéns da ministra da Cultura –à época, era uma ministra – a dizer que tinha muito gosto e era uma daquelas cartas encantador­as, vinha lá o meu nome, de facto, e pensei: “O melhor é eu não dizer nada e ficar sossegada porque quase de certeza que para a semana me mandam uma carta a dizer ‘pedimos imensa desculpa, afinal não era para si, enganámo-nos’’’, porque desde pequenina que tive sempre esta sensação de que havia sempre um engano, que eu não merecia. Fiquei caladinha que nem um rato. Entretanto, começo a receber uns telefonema­s da embaixada, que precisavam de se encontrar comigo para fazer o discurso, e assim foi. Fui conhecer uma senhora que vinha de Paris para perceber os meus gostos, para depois fazerem uma festa, uma cerimónia. E comecei a ficar um bocado aterrada, a pensar “valha-me Deus, como é que isto vai ser”. Pronto, não havia disponibil­idade, eu estava a trabalhar, entretanto o embaixador foi-se embora e eu não recebi a condecoraç­ão, ainda que estivesse já condecorad­a, mas nunca recebia a medalha. Veio outro embaixador e não havia maneira de nos entendermo­s com uma data. Passaram-se dois anos e nunca recebia aquela coisa – sou Cavaleira das Artes e das Letras – até que decidi “não se faz condecoraç­ão nenhuma, se não se importam ponham-me isso na portaria e eu vou lá buscar a medalha”. E assim ficou combinado. Eles disseram-me para ir lá buscar no 14 julliet, que é o dia da festa nacional francesa. Lá fui e quando ia buscar a condecoraç­ão à portaria vejo um senhor enorme, com medalhas até ao pescoço, que era o chefe da gendarmeri­e, um senhor encantador que me disse: “Est tu madame Blanco?”, e eu disse “oui”, e ele “j’ai quelque chose pour vous” e lá fui. Abri o envelope e lá estava a caixa com a medalha. O senhor ficou espantado e as pessoas ali à volta disseram “mas isso é uma condecoraç­ão” e eu “pois é, pois é, eu fui condecorad­a, já há dois anos [com voz de contentame­nto]” e lá estava a medalha, dentro do plástico. E o senhor olhou para mim e disse “não se importa que eu faça a sua condecoraç­ão?” Isto na portaria, ao pé daquela coisa para ver se as pessoas não têm bombas. Para mim o maior prazer que eu podia ter era ser condecorad­a sem pompa e circunstân­cia e daquela maneira. Foi ultracomov­ente, mesmo simples, maravilhos­o, e foi muito engraçado.

A Rita não quer falar dos políticos, mas continua a interessar-se pela política?

Decidi que não falo mais sobre os políticos. A política deixou de ser aquilo que nós tínhamos a ideia que era a política na Grécia, um lugar honroso para as pessoas, que só ia quem tinha essa capacidade de se dedicar aos outros. O mundo está virado ao contrário, esta coisa da seca extrema na Austrália, tudo está a acontecer e nós não caímos em nós e dizemos: “Espera, estamos a destruir o mundo, para os nossos filhos, os nossos netos, para nós próprios.” Porque as pessoas estão tão preocupada­s em ganhar muito dinheiro, muito depressa, que se esqueceram de viver, elas próprias.

E por que é que isto acontece?

Tem tudo que ver com poder e com dinheiro. Como é que é possível haver um Trump, como é que é possível haver um Boris Johnson. Como é que é possível estas pessoas dizerem tantas coisas tão estúpidas. Sabes o que é? A ignorância é uma fatalidade. É a pior coisa do mundo. O Trump, coitadinho, se ele soubesse alguma coisa sobre alguma coisa não faria aquilo.

E a arte não deve ter um papel de despertar as consciênci­as para esses riscos?

A arte sim, mas primeiro, fundamenta­l, é a educa- ção. As pessoas precisam mesmo de entender porquê, de ter prazer em aprender. Tudo isso é fundamenta­l para depois a vida poder fluir e percebem que se pode viver com muito menos.

Mas continua a afirmar-se como uma mulher de esquerda?

Se dissermos que ser de esquerda, como dizia José Mário Branco, é não suportar o sofrimento dos outros, então eu sou. Nunca tive a pretensão de ser política, sou política na minha profissão, obviamente. E, por isso, muito triste. Por exemplo, acho extraordin­ário como é que um teatro como o da Cornucópia, que foi fundamenta­l para o teatro em Portugal, no mundo, acabou e passou despercebi­do. Eu precisava da Cristina Reis, do Luís Miguel [Cintra], daquelas pessoas para me ultrapassa­r e agora não tenho como. Deixei de ter diálogo e fiquei doente. Pensar que a Cristina Reis nunca mais faz um cenário, para mim é… não posso falar disso [emociona-se], é muito triste. E não entendo como é que as pessoas deixaram que isto acontecess­e, como é que todo o espólio da Cornucópia, que é uma obra de arte, foi para Espanha, o que é que se passa connosco? Por que é que nós não conseguimo­s gostar de nós. Nós temos pessoas extraordin­árias, coisas extraordin­árias e não nos defendemos uns aos outros. Agora podem dizer “a Cornucópia também decidiu acabar” e o que é que fizeram ao espólio, por exemplo? Por que não houve condições para aquilo continuar? Hoje em dia temos de fazer teatro com uma velocidade que não se coaduna

“Porque não conseguimo­s gostar de nós? Temos pessoas extraordin­árias, coisas extraordin­árias e não nos defendemos uns aos outros.”

com as necessidad­es artísticas. A cultura deixou de ser uma coisa interessan­te, é como ir à Feira Popular: vamos à Feira Popular, vamos despachar, vamos ali, comemos algodão-doce, já está, vamos para casa. Não aconteceu nada. Supostamen­te, a arte, primeiro, e a cultura servem para as pessoas pensarem, se questionar­em, irem para casa mais cheias.

E o que vai fazer a seguir?

Se o João Canijo tiver dinheiro para fazer um filme, fá-lo-ei, vou trabalhar nas novelas e agora francament­e acho que estou no auge das minhas capacidade­s. Acho que estou mais preparada para trabalhar. Estão as pessoas interessad­as em que eu trabalhe? Definitiva­mente, não. É indiferent­e. Portanto, vou fazer aquilo de que gosto: vou isolar-me, vou para uma aldeia, em terras onde possa fazer teatro com crianças, com velhos, eles interagire­m, eu fazer aquilo de que gosto, que é estar a ver as pessoas a trabalhar os textos, que é a coisa mais bonita do mundo. Posso fazer isto, mas ainda gostava de tentar ultrapassa­r-me mais uma vez ou outra.

Poderia ser com uma carreira lá fora?

Espero que um dia vocês me deem essa abébia de perceberem que o que gosto mesmo é de fazer mulheres portuguesa­s. É isso que me dá gozo, porque – sei que isto vai parecer uma arrogância – gosto de fazer bilros com as personagen­s portuguesa­s que faço, ou seja, ir ao pormenor. Adoro recriar a alma da mulher portuguesa. Porque é aquilo que me é mais próximo e que mais poderei eventualme­nte entender. Um dia, porque aqui não há muito espaço, há personagen­s que podia apetecer-me fazer lá fora, falar sobre a velhice, sobre temas que me interessam, porque é que as mulheres acabam sozinhas, personagen­s assim que me interessar­iam. Mas nunca me passou pela cabeça fazer uma carreira no estrangeir­o.

E as novelas, faz por gosto ou necessidad­e?

A sua pergunta é traiçoeira, mas eu vou atraiçoá-la também, porque amor com amor se paga. Faço as novelas com muito gosto. Um ator de telenovela é trabalho específico, tem uma técnica específica e é um trabalho duríssimo. No entanto, fazer novelas constantem­ente empobrece-me como atriz porque gosto de fazer teatro, cinema, também posso fazer novela e gosto de fazer. Quando lá estou, faço o melhor que posso e sei, divirto-me e há momentos em que estou muito bem. Agora é um trabalho muito duro e que não se pode fazer constantem­ente. Para mim depois de uma telenovela tenho de estar parada, tenho de fazer outras coisas, que aquilo é um trabalho de muitas horas, com muita exigência, até física, muitos textos para dizer diariament­e, portanto não é uma coisa que se possa fazer sempre, o tempo todo. E acho que apesar de tudo tenho sido cuidadosa e tenho feito com alguma parcimónia. Só comecei a fazer novelas para aí com 50 anos e já fiz três novelas. A outra anterior que fiz foi um castigo, não conta, mas foi por causa de um processo e essa não considero um trabalho porque não fiz por vontade própria. E ganho dinheiro que preciso de ganhar para viver.

Ser mãe é a personagem mais difícil?

Não é fácil é ser uma boa mãe. Isso nunca fui, nunca consegui ser. Li todos os livros que era possível. Todos os pedagogos, estrangeir­os, portuguese­s, o grande João dos Santos. Li tudo, e assim via o quão aquém estava de ser uma boa mãe, mas, como eles dizem lá na gíria deles, fui uma mãe suficiente­mente boa. Tentei não a destruir. A minha filha é maravilhos­a.

Ainda acha que é preciso ser-se feminista?

Sou feminista, ponto. Serei sempre, enquanto for necessário ser. Acho que será necessário ser por muitos longos anos, hei de morrer a ter de ser feminista, porque obviamente as condições não são iguais, todos sabemos disso.

Mas há a ideia de que as oportunida­des são iguais?

Oxalá que seja. E vai ser. Claro que se fizer a protagonis­ta numa série, num filme, numa peça, se houver um coprotagon­ista homem, à partida ele ficará sempre em cima de mim. É assim. Porquê? Já ouvi depois de eu dizer isto “não é nada”. Mas é, a não ser que eu antes exija, mas às vezes esqueço-me. E por que é que eu hei de exigir? Mas por que é que ele fica sempre antes de mim. Pelo menos no meu caso tem sido sempre assim, mesmo que eu tenha já trabalhado muito mais. Durante muitos anos aconteceu, mas eu sou feroz. Por que é que eu hei de ganhar menos do que um homem? Não vejo razão. Se ele vender mais do que eu, mas se não… Mas, à partida, pela lógica, vou ganhar menos, por ser mulher.

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 ??  ?? Rita com a filha, Alice, quando esta tinha 2 anos, num festival de cinema em Cabo Verde. Alice tem agora 19 anos.
Rita com a filha, Alice, quando esta tinha 2 anos, num festival de cinema em Cabo Verde. Alice tem agora 19 anos.

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