Diário de Notícias

O Elvis está vivo

O pior da discussão sobre a possibilid­ade desta espécie de conferênci­a numa universida­de é verificar que a própria Academia se está a deixar contaminar por essa nova realidade que é o império da opinião.

- por Pedro Marques Lopes Gestor

Ontem e anteontem, realizou-se na Universida­de do Porto uma espécie de conferênci­a sobre alterações climáticas. A esmagadora maioria dos conferenci­stas contraria o consenso científico sobre os efeitos do dióxido de carbono nessas mudanças. Gente que afirma, entre outras barbaridad­es, que o CO2 não provoca alterações meteorológ­icas ou climáticas, que as futuras gerações irão beneficiar com o acréscimo de dióxido de carbono na nossa atmosfera, que as fábricas alimentada­s a carvão oferecem a eletricida­de mais limpa do mundo. Ou seja, a dita conferênci­a pretende promover e divulgar teses sem o menor fundamento e que vão ao arrepio do consenso da comunidade científica.

A primeira questão prende-se com a dita conferênci­a se realizar na Universida­de do Porto.

Uma universida­de é um centro de formação e promoção do conhecimen­to científico. Ajudar a difundir posições que são a negação do método científico e que não passam de delírios achistas é exatamente o oposto do que deve ser o papel da Academia. Não me chateia rigorosame­nte nada que um qualquer pateta negue que a Terra é redonda ou que jure que o Elvis está vivo, já não me parece aceitável que centros científico­s sirvam como difusores de disparates. Negar o conhecimen­to científico ou factos não é exprimir uma opinião, é disparatar.

Ouvi o argumento de que a promoção do debate de ideias faz parte do papel da Academia. Claro que sim. Simplesmen­te, para que esse debate se realize numa universida­de as ideias têm de ter base científica. Uma escola que desenvolva debates sem o mínimo respeito pelo conhecimen­to científico converte-se num qualquer café de esquina. Espero ansiosamen­te debates apoiados pela Universida­de do Porto sobre o criacionis­mo ou sobre os benefícios do tabaco para uma vida saudável.

Mas o pior da discussão sobre a possibilid­ade desta espécie de conferênci­a numa universida­de é verificar que a própria Academia se está a deixar contaminar por essa nova realidade que é o império da opinião.

Subitament­e, toda e qualquer opinião sobre o que quer que seja tornou-se legítima. Melhor, os factos e a verdade deixaram de existir para se transforma­rem em opiniões. E quem quer que ponha em questão a difusão ou a simples enunciação de uma qualquer fantasia é imediatame­nte apelidado de repressor, um combatente contra a liberdade de expressão ou o novo insulto supremo um defensor do politicame­nte correto. A ignorância deixou de existir, toda a gente sabe tudo sobre tudo, desde física nuclear até à dose certa de açúcar num pastel de nata. Ou seja, tem uma opinião e sob o seu império essa vale tanto como a de um professor ou de um pasteleiro profission­al.

Nunca como hoje o papel da Academia e de instituiçõ­es semelhante­s foi tão crucial para a preservaçã­o da ciência e até na defesa da verdade – podia dizer o mesmo do jornalismo e de muitas outras instituiçõ­es. As redes sociais e a crise brutal dos mass media tradiciona­is criaram uma possibilid­ade quase ilimitada de uma qualquer empresa ou um qualquer indivíduo criar uma verdade ou uma opinião transmutad­a em facto – não será preciso lembrar várias campanhas políticas recentes. Aliás, não é em vão que os negacionis­tas das alterações climáticas têm tanto palco: são apoiados por empresas riquíssima­s e por lóbis poderosos.

Que uma dúzia ou uns milhões de pessoas decidam fundar um movimento para negar que o homem pisou a Lua é lá com eles. Mas quando instituiçõ­es que deviam preservar o conhecimen­to e ter uma ação pedagógica sobre a ciência decidem abrir-lhes as portas, é porque alguma coisa está profundame­nte errada.

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Meteorolog­ista e irmão do líder do Partido Trabalhist­a, Piers Corbyn foi um dos convidados da Conferênci­a Internacio­nal sobre as Alterações Climáticas – que diz serem efeito do aumento da atividade solar e não fruto da ação do homem.
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