Política dos transportes
Na semana passada, ao propor a descida do valor dos passes sociais em Lisboa e na Área Metropolitana de Lisboa, Fernando Medina fez política com letra grande. Política com letra grande é uma mistura de boa política pública e de boa política ideológico-partidária. E a reação negativa ao que disse é a prova disso mesmo. Caí no erro de elogiar a medida, comecei logo a apanhar, sobretudo dos meus correligionários, ouvi disparates, ouvi coisas com sentido, mas acima de tudo fiquei mesmo com a sensação de que um ou dois já teriam andado de transportes.
Um presidente de câmara tem o dever, no sentido político, moral, jurídico e ético, de defender a cidade que comanda. E o presidente da cidade de Lisboa não está incapacitado de o fazer. E disse a cidade e não os seus habitantes ou até eleitores porque as cidades são muito mais do que isso, são a comunidade de todos os que lá se realizam hoje, portanto também os trabalhadores e visitantes, mas sobretudo em todos os dias futuros (podia dizer todos os amanhãs, mas era um pouco piroso). Por isso, critiquei todas as linhas de campanha que defendem Lisboa aos lisboetas pela simples razão de que não há lisboetas. Ao propor a descida dos passes sociais, Medina está a afetar a vida dos que aqui vivem, mas também dos que aqui trabalham e nos visitam, e, porque as medidas tendem a perdurar, de todos os que aqui possam trabalhar, estudar e viver. Ao compreender assim a cidade, ao ver que os problemas de Lisboa não existem sem a visão macro da AML (a Área Metropolitana de Lisboa introduz uma pressão de pendularidade comparativamente superior a outras cidades europeias) e que a cidade é o que vai ser, Medina de uma penada fez política e fez cidade, na sua etimologia mais lata do que as fronteiras eleitorais ou administrativas.
Ao avançar com uma medida ousada, Medina está a fazer política na medida em que está a ser ele a marcar a agenda. Mais, pela sua relevância institucional (presidente da CML e da AML) tem o poder de impor essa medida a quem manda. E isto é o que deve fazer um autarca: forçar o debate sobre quem paga aquilo que acha melhor para a cidade. Medina está assim a fazer política de baixo para cima, a forçar a alteração ou a regulamentação de leis que, sem este empurrão, talvez continuassem a marinar. Será cada vez mais assim no futuro – a agenda é das e pelas cidades, e não para as cidades. Está também a fazer política em sentido mais estrito porque obriga Cristas, ao mesmo tempo opositora na cidade e candidata no país, a ter de, aparentemente, optar entre uma e outro (gambito de que se tem até agora defendido bem).
A medida-Medina tem vantagens ambientais e sociais óbvias. Dos documentos internacionais (Acordo de Paris; Sustainable Development Goals) aos nacionais (dos PROT a qualquer panfleto de campanha), todos reclamam maior universalização do transporte público. Ora, tendo Lisboa o maior indicador de uso de carro privado da Europa, até La Palisse sabe o que há a fazer. Achar que o preço do transporte público não tem impacto no uso do carro é no mínimo um raciocínio original. E depois é preciso não esquecer que, poupando no passe e no carro, milhares de pessoas vão ter uns euros de vida melhor, milhares de famílias, sobretudo as que têm de se deslocar horas e dias da sua vida. Alguém acha que é a Madonna quem vai usar o novo passe família para levar o miúdo aos treinos ao Benfica de 758?
Estando toda a gente de acordo com o princípio (mais passes, mais baratos, menos carros), é preciso discutir quem paga. A grande revolução dos transportes foi feita pela Lei 52/2015, comandada por Sérgio Monteiro no governo de Passos Coelho, criando no fundo o princípio de que a competência de mobilidade deve ser local, bem como o financiamento (ironicamente ao municipalizar a Carris, Lisboa fez isso mesmo, mas é uma conversa que pode ser tida em separado). Hoje, todos pagam o que se passa na AML. Se eu for da Costa de Caparica para a Ajuda, pagamos todos no barco (a dívida da Transtejo é de todos), pagamos todos no Metro, pagam os lisboetas (seja isso o que for) na Carris. Ou seja, há de tudo. Para se cumprir a Lei 52/2015 era preciso um abanão, e talvez este seja o abanão que faltava, porque é precisamente na parte do financiamento que a lei precisa de retoques.
Na Cimeira das Áreas Metropolitanas, em março, autarcas de PS, PSD e PCP concluíram que a primeira prioridade é “a criação de um passe único de âmbito metropolitano” – agora Medina tem de os convencer sobre a fatura. Como vejo a coisa a ser resolvida é através de uma contribuição de mobilidade (sobre as empresas das áreas metropolitanas, na forma de uma derrama adicional; ou um adicional sobre os salários, ou sobre a massa salarial, ou por trabalhador – no estilo do versement transport francês?; uma contribuição por cada veículo entrado na cidade?; um misto de tudo isto? Mas são precisas alterações legislativas para lá da competência municipal (o que em si é outra discussão, a de adequar as competências fiscais aos maiores encargos financeiros), ou uma visão pouco conservadora das leis existentes. Não será difícil encontrar uma solução justa, mas exige trabalho e sensibilidade.
A questão a que Medina tem de responder – e que teriam feito melhor figura os críticos em perguntar – é qual a estimativa real de acréscimo de procura que esta medida vai gerar, e como vai ser a resposta operacional a esse aumento de procura. A Linha Amarela às dez para as nove vai ter mais carruagens? O barco das oito e dez vai deixar de ser suprimido? Como é que isso vai ser contratualizado com os operadores? E a CP em Lisboa vai dar conta do recado? E, já agora, porque é que o Navegante Escola não abrange a CP? Alguma coisa contra a malta que vive em Marvila ou em Campolide? Mas esta conversa, estas perguntas, vai implicar mais financiamento público geral, até porque, caso não tenham reparado, a AML é de entre as zonas do mundo com as quais nos queremos comparar aquela com menor financiamento público do serviço público de transportes (10% vs. uma média europeia de 50%).
Depois é preciso aproveitar o embalo para resolver os dois outros grandes desafios da mobilidade urbana. O primeiro é a bilhética (existem na área de Lisboa mais de 1600 passes diferentes, e um ser humano de inteligência média não consegue perceber quanto tem de pagar – tentem, por exemplo, no site da Transportes Sul do Tejo perceber quanto custa o passe Sesimbra-Lisboa). O outro é que todas estas soluções têm de ser absolutamente integradas com as novas formas de mobilidade, sobretudo no first e no last mile (integrar na mesma app a Gira, o passe, os ubers ou a eCooltra), desenvolver incentivos para que as empresas as facultem aos trabalhadores, aumentar o estacionamento a não residentes, isentar o carsharing, por aí fora.
Advogado