O barulho e as igrejas
Num esforço para sensibilizar os poderes municipais para a necessidade de garantir esse novo direito constitucional que é o direito a ter umas horas de sono em cada noite, um grupo de cidadãos do Mindelo criou um Movimento contra o Barulho nas Horas de Repouso. Como era de esperar, os promotores do movimento foram muito felicitados e, para além de um apoio explícito do próprio presidente da República, também tiveram direito a um parecer escrito da Comissão Nacional para os Direitos Humanos que, em cinco páginas dactilografadas a um espaço e aprovadas em plenário, não hesitou em manifestar solidariedade para com os torturados por esses desacatos, ter-minando com uma forte exortação à Câmara de São Vicente no sentido de exercer as suas atribuições quanto a matéria tão importante e de tanta utilidade social.
Muito sabiamente, o parecer começa por enumerar os nossos direitos em papel, como o direito à saúde, ao repouso e ao bem-estar consagrados pela Declaração Universal dos Direitos do Homem como direitos fundamentais de todos os cidadãos; a seguir faz uma breve incursão pela Constituição de Cabo Verde que preceitua que a integridade moral e física das pessoas é inviolável e que todos têm direito à saúde e dever de a defender e promover, para finalmente chegar ao Código Civil, que estabelece que o proprietário de um imóvel pode opor-se à emissão de fumo, fuligem, vapor, calor ou ruídos, bem como à produção de trepidações e a outros quaisquer factos semelhantes, provenientes de prédio vizinho, sempre que tais factos importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam.
Esse era o ponto mais importante: as batucadas noturnas e quase diárias espalhadas um pouco pela cidade e todas autorizadas pela câmara! E o douto parecer a lembrar-nos que temos o direito de pedir indemnização à Câmara Municipal por eventuais danos causados pelas suas omissões.
Ora bem, a câmara terá sabido do parecer e receado o risco de ser chamada à pedra. E logo tomou providências. E tivemos finalmente o primeiro mandato municipal diretamente dirigido contra o ruído, o barulho que nos apoquenta e nos limita no nosso direito à tranquilidade que a própria câmara reconheceu como estando consagrado na Constituição.
Houve apenas um senão: o mandato ordenava o encerramento das instalações de uma igreja maná, por sinal legalizada, com o argumento de que “os moradores da zona têm expressado o seu desagrado contra as actividades geradoras de poluição sonora resultantes das manifestações de culto”.
É facto que são barulhentos, a gente ouve-os de longe e pensa, certamente que o Deus que eles adoram é completamente surdo e por isso precisam de fazer essa gritaria para o despertar. Mas, por outro lado, pergunta-se, porquê começar a luta contra o ruído precisamente por uma igreja que normalmente labora de tardinha, quando as noites dos fins de semana da cidade inteira são continuamente atormentadas pelos bailes monumentais de sons que desafiam os ruídos de todos os infernos?
Esse era o ponto mais importante: as batucadas noturnas e quase diárias espalhadas um pouco pela cidade e todas autorizadas pela câmara!