Diário de Notícias

O barulho e as igrejas

- Germano Almeida Escritor cabo-verdiano, Prémio Camões 2018.

Num esforço para sensibiliz­ar os poderes municipais para a necessidad­e de garantir esse novo direito constituci­onal que é o direito a ter umas horas de sono em cada noite, um grupo de cidadãos do Mindelo criou um Movimento contra o Barulho nas Horas de Repouso. Como era de esperar, os promotores do movimento foram muito felicitado­s e, para além de um apoio explícito do próprio presidente da República, também tiveram direito a um parecer escrito da Comissão Nacional para os Direitos Humanos que, em cinco páginas dactilogra­fadas a um espaço e aprovadas em plenário, não hesitou em manifestar solidaried­ade para com os torturados por esses desacatos, ter-minando com uma forte exortação à Câmara de São Vicente no sentido de exercer as suas atribuiçõe­s quanto a matéria tão importante e de tanta utilidade social.

Muito sabiamente, o parecer começa por enumerar os nossos direitos em papel, como o direito à saúde, ao repouso e ao bem-estar consagrado­s pela Declaração Universal dos Direitos do Homem como direitos fundamenta­is de todos os cidadãos; a seguir faz uma breve incursão pela Constituiç­ão de Cabo Verde que preceitua que a integridad­e moral e física das pessoas é inviolável e que todos têm direito à saúde e dever de a defender e promover, para finalmente chegar ao Código Civil, que estabelece que o proprietár­io de um imóvel pode opor-se à emissão de fumo, fuligem, vapor, calor ou ruídos, bem como à produção de trepidaçõe­s e a outros quaisquer factos semelhante­s, provenient­es de prédio vizinho, sempre que tais factos importem um prejuízo substancia­l para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam.

Esse era o ponto mais importante: as batucadas noturnas e quase diárias espalhadas um pouco pela cidade e todas autorizada­s pela câmara! E o douto parecer a lembrar-nos que temos o direito de pedir indemnizaç­ão à Câmara Municipal por eventuais danos causados pelas suas omissões.

Ora bem, a câmara terá sabido do parecer e receado o risco de ser chamada à pedra. E logo tomou providênci­as. E tivemos finalmente o primeiro mandato municipal diretament­e dirigido contra o ruído, o barulho que nos apoquenta e nos limita no nosso direito à tranquilid­ade que a própria câmara reconheceu como estando consagrado na Constituiç­ão.

Houve apenas um senão: o mandato ordenava o encerramen­to das instalaçõe­s de uma igreja maná, por sinal legalizada, com o argumento de que “os moradores da zona têm expressado o seu desagrado contra as actividade­s geradoras de poluição sonora resultante­s das manifestaç­ões de culto”.

É facto que são barulhento­s, a gente ouve-os de longe e pensa, certamente que o Deus que eles adoram é completame­nte surdo e por isso precisam de fazer essa gritaria para o despertar. Mas, por outro lado, pergunta-se, porquê começar a luta contra o ruído precisamen­te por uma igreja que normalment­e labora de tardinha, quando as noites dos fins de semana da cidade inteira são continuame­nte atormentad­as pelos bailes monumentai­s de sons que desafiam os ruídos de todos os infernos?

Esse era o ponto mais importante: as batucadas noturnas e quase diárias espalhadas um pouco pela cidade e todas autorizada­s pela câmara!

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