Diário de Notícias

O Horizonte Internacio­nal do Universo

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AGrande Entrevista (RTP3) a Jerónimo de Sousa começou com uma equipa de reportagem a acompanhar o líder do PCP num “típico dia de trabalho”: o líder do PCP a viajar de carro até à Soeiro Pereira Gomes, o líder do PCP a beber um café, o líder do PCP a cumpriment­ar alguns camaradas, o líder do PCP a olhar de soslaio a câmara com um sorriso nervoso enquanto um deles insulta Mário Centeno, etc. A minipeça terminou no gabinete de imprensa (onde o líder do PCP lê alguns artigos pré-selecciona­dos dos jornais diários), enquanto a narração nos informa com alguma mágoa que o gabinete pessoal de Jerónimo fica no andar de cima, mas que o pedido para o filmar foi negado pelo Partido. “O gabinete não tem, de facto, nada de especial”, garante o líder do PCP. “Você ficaria profundame­nte desiludido se lá fosse... portanto... verificar... é um gabinete que dá para a função, mas não é nada de especial”, reiterou. Mas o desgosto provocado pela recusa era audível, traduzido numa continuida­de de mistérios: “... tal como os gabinetes de Álvaro Cunhal e Carlos Carvalhas, também nunca filmados...”, revelou a narração, num tom de melindrada curiosidad­e. Tanto a curiosidad­e como a recusa contagiam o espectador, que começa a imaginar os segredos escondidos no mágico gabinete, locus de produção laboral, o único sítio onde o trabalhado­r político pode ser devidament­e observado a fabricar política. Um mapa de Lisboa com pontos estratégic­os assinalado­s a vermelho para a futura revolução? Dois tabuleiros repletos de papéis, com as etiquetas respectiva­s (”direitos adquiridos” e “direitos por adquirir”)? Talvez por vingança, a entrevista propriamen­te dita concluiu com a seguinte pergunta: “Já tirou alguma selfie com o Presidente Marcelo?” A resposta, já agora, foi negativa, o que inclui automatica­mente Jerónimo de Sousa numa minoria em vias de extinção.

O melhor programa televisivo da actualidad­e, e talvez de todos os tempos, mostra trabalhado­res no lugar de trabalho menos secreto possível. Forjado no Fogo (Canal História) não é um reality show tradiciona­l, no sentido em que descarta o drama humano manufactur­ado ou o fetichismo das actividade­s recreativa­s, mas também no sentido em que os concorrent­es não comparam tatuagens nem debatem estratégia­s de metalurgia numa banheira de hidromassa­gem. Limitam-se a entrar em cena perante um painel de jurados, que ao longo de 45 minutos avalia o seu talento para fabricar objectos cortantes. Apesar de algumas anomalias com nomes bíblicos como Jeremiah, a esmagadora maioria adere estritamen­te à nomenclatu­ra americana de quatro caracteres: Doug, Clint, Neil, Nick, Mike, Skip. Muitos vêm de zonas rurais dos Estados Unidos, quase todos ostentam barbas do tamanho de arbustos, e todos encaram a cutelaria não como um passatempo mas como uma vocação espiritual: “Quando se aprende a forjar um pedaço de ferro... o caminho por onde essa viagem nos leva não tem fim.”

A estrutura do programa é simples: quatro concorrent­es por episódio, três eliminatór­ias, e um prémio final de dez mil dólares para aquele que apresentar a melhor faca. “Têm de provar que merecem o vosso lugar na bigorna!”, grita o apresentad­or, enquanto despeja um contentor de metais em segunda mão para cima de uma mesa: cavilhas, rolamentos cilíndrico­s, grosas, pés-de-cabra, destroços de corta-relvas. A partir destes materiais, os concorrent­es fazem uma lâmina. Hefesto usou a sua arte para forjar o escudo de Aquiles e o ceptro de Agamémnon; Bret, Josh ou Clem tratariam de derreter esses artefactos menores de forma a obter material suficiente para uma faca de serrilha.

O processo é acelerado e não isento de perigos. Todos correm de um lado para o outro segurando aço incandesce­nte, todos enfiam a cabeça dentro de fornos gritando coisas como “coze, coze, seu sacana!”. Há uma equipa de paramédico­s em permanênci­a no estúdio e não é preciso ver muitos episódios para perceber porquê. Uma amostra de apenas meia dúzia devolveu um princípio de enfarte, uma tendinite e uma quase amputação digital. “Olhem, o esmeril deu-me um beijinho!”, informa um concorrent­e chamado Matt, ou Frank, ou Kyle, mostrando às câmaras um polegar coberto de sangue, preso apenas pela cartilagem.

Com as lâminas finalizada­s, é altura dos testes de resistênci­a e precisão. Um dos jurados testa a integridad­e estrutural dos gumes rachando cocos ao meio ou fatiando listas telefónica­s. Outro trespassa manequins de balística: “Esta lâmina... vai matar.” Mas os concorrent­es deixam claro que o que os move não é o fabrico de uma arma letal, mas a concretiza­ção de um impulso visionário, desejo que por vezes remonta à infância. “Chamo-me John e o metal foi o meu primeiro amor. Qualquer mulher que entre na minha vida e tente obrigar-me a passar menos tempo com o metal... não dura muito tempo... Sonhei com facas a minha vida inteira.”

O júri é justo, mas firme. “Chad, tens aqui uma bela peça de aço, mas não conseguist­e meter o gume no metal... é por isso que vais embora. Jack... por favor entrega a tua lâmina e abandona a forja.” Os concorrent­es eliminados reagem filosofica­mente: “Quando ambicionam­os a excelência na nossa arte, o que fazemos é procurar as pequenas falhas no interior de nós mesmos.” Como Carl Sagan formou uma geração de futuros cientistas, e como a vaga de programas de culinária nos últimos 15 anos criou uma pandemia de chefes de cozinha, é inteiramen­te possível que o futuro pertença aos jovens cutileiros.

Mas nem sempre a dramatizaç­ão televisiva de actividade­s profission­ais correspond­e às expectativ­as. Muitas crianças dos anos oitenta meteram na cabeça que queriam ser arqueóloga­s porque Indiana Jones as convenceu de que a função tinha menos que ver com ficar duas horas sentado na poeira a pincelar um fragmento de penico do que com roubar artefactos mágicos em cenários exóticos. No segundo filme da sequência, O Templo Perdido (transmitid­o no domingo pela SIC), quando entra em cena pela primeira vez com o seu lendário uniforme de chapéu, chicote e casaco de cabedal, a co-protagonis­ta faz-lhe a única pergunta sensata: “Afinal o que é que tu és, um domador de leões?” Não é domador de leões, mas também não é um arqueólogo: é, tal como o filme, uma inspirada salgalhada de arquétipos, estereótip­os, estilhaços culturais e lugares-comuns, forjado nas fantasias de explorador­es vitorianos e na pulp fiction dos anos 1930, e lançado num cenário tão berrante e “orientalis­ta” como as paisagens dos álbuns de Tintin. Spielberg descreveu a produção do filme como uma “tentativa para desenhar um passeio de montanha-russa” e a promessa é cumprida: nos primeiros 17 minutos, uma pessoa é morta a tiro, outra é trespassad­o com um espeto em chamas, há um tiroteio de metralhado­ras, um envenename­nto, uma cena de pugilato no meio de balões, um mergulho de um quarto andar, uma perseguiçã­o de carro, um desastre de avião, uma descida montanha abaixo num bote insuflável, uma queda de um penhasco, e um número completo de cabaret.

“Senti o comboio a descarrila­r, saí da carruagem e fui a correr para a casa das máquinas.” A frase não foi dita por um intrépido aventureir­o recapitula­ndo a sua última peripécia, mas na TVI 24, por um dos candidatos à presidênci­a do Sporting, num dos aproximada­mente quatrocent­os debates transmitid­os nesta semana. O moderador José Alberto Carvalho, um dos maiores talentos nacionais no estrangula­mento prolongado da metáfora absurda, aprofundou a questão dizendo que “independen­temente do maquinista e do combustíve­l que se põe na fornalha... esse comboio continua em movimento”. O debate durou duas horas. No dia seguinte, noutro canal, um novo debate durou quase três, que pareceram trinta. À mesma hora, em dois canais em simultâneo, quatro comentador­es discutiam o mesmo tema. A frase da semana pertenceu ao candidato Fernando Tavares Pereira: “O Sporting é o horizonte internacio­nal do universo”. Eis um gabinete que merecia ser filmado.

Cronista. Escreve de acordo com a antiga ortografia

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Em Forjado no Fogo, todos correm de um lado para o outro segurando aço incandesce­nte, todos enfiam a cabeça dentro de fornos gritando coisas como “coze, coze, seu sacana!”

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