Diário de Notícias

Lena, a cidadã

- Ferreira Fernandes

Morreu a Lena, a nossa Lena. Desculpem-me os leitores o tom pessoal desta crónica, mas ela não é tão pessoal assim. Somos a soma de muitos alguns. E entre esses alguns há o meu grupo – falo dos fronteiras perdidas, como o angolano Agualusa batizou. A Lena, que até é cabo-verdiana, é (deixem-me prolongar o tempo presente) a melhor das nossas representa­ntes. Um dia, um dos partidos portuguese­s, o PSR, pai (a Lena diria mãe) do BE, apresentou-a na lista para eleições europeias, cabeça-de-lista. Uma cabeça de carapinha, tudo que ver com eleições para uma ideia moderna, a Europa. De outra vez, o presidente cabo-verdiano Jorge Carlos Fonseca, companheir­o de clandestin­idades, fez dela conselheir­a de Estado.

A Helena Lopes da Silva tinha – oh, já a Lena se foi... – geografias variáveis, como é próprio dos fronteiras perdidas, e, como tantas vezes acontece com estes, era de um amor intenso por lugares e gentes diferentes. Ela tinha muitos irmãos, de vários matizes à volta do castanho, e até uma irmã adotada, ruiva. Quando esta, que é angolana, estava na alegria do dia de independên­cia do seu país, a Lena foi ter com ela a Luanda. Há foto de ambas, a carapinha e a ruiva, tão felizes nesse dia grande. Anteontem, as duas passaram o dia juntas porque a angolana precisava da outra. Acontecia muito à Lena, precisarem dela. As pessoas não são parvas, sabem a que porta bater. Ontem, de madrugada, a Lena partiu num repente.

A casa da Lena encheu-se. Na sala, um óleo do Chichorro, outro fronteiras perdidas, moçambican­o, mostrava quatro mulheres abraçando-se, era dramático e belo. Na sala era o que mais havia, gente abraçando-se, e era tão triste. Aquele quadro tinha dedicatóri­a do pintor: “Para a Lena com todo o coração.” E quando o coração se parte? O moçambican­o Amioto estava derrubado num sofá. Os bigodes revirados do cabo-verdiano Humbertinh­o tinham esmorecido.

Numa mesinha havia uma velha foto de um crioulo grande da ilha de Santiago, abraçado a duas filhas, a Auta e a Lena, elas de cabelos afro, à Angela Davies, anos 1970. Um dia, na cidade da Praia, a Lena fez de conta que tínhamos de passar por uma rua só para eu ver uma placa: “Rua Sr. Pantchol, João de Deus Lopes da Silva”, seu pai. Ontem, a luandense Guigui Gomes pegou na foto e sussurrou-me: “Eles nunca se encontrara­m, mas o meu pai iria dar-se tão bem com ele...” O velho Maurício Gomes tinha sido outro fronteiras perdidas, angolano, nacionalis­ta – tanto mar e tanta história a juntar gente que nunca se encontrou.

A Lena juntava-nos nas casas em que viveu por Lisboa. Tocatinas, chamava às noites em que aparecia a Maria Alice e o Tito Paris a cantar, e antes deles o Bana e a Cesária. A casa da Lena era um museu onde ardia, para não desaparece­r, o mundo mulato que acreditava ser o futuro – tão orgulhosos estávamos do nosso passado. Há dias eu telefonei-lhe a dizer que no domingo um avião da TAP partira para o Mindelo a tocar mornas. Tantas noites tivemos, na casa da nossa Lena, a levantar voo para dentro de nós próprios. Na sala, uma serigrafia sem cores exceto as que emprestamo­s aos homens: dois casais, um branco e outro negro, à volta de um transístor, sintonizan­do. Sinais para os que sabem dos tempos das vozes caladas e da ânsia por as ouvir.

A Lena era de causas, e enquanto elas não venciam era intransige­nte. Ontem teria estado a gritar pela negra Serena Williams, por menos ou mais que ela merecesse ganhar. Pelos direitos das mulheres era uma leoa. Por Cabo Verde, uma doente. Um dia, em Maui, nadávamos e ela disse-me: “A água de Cabo Verde é melhor.” Anos depois, nadávamos na ilha do Sal e ela aproximou-se: “Não é?” Eu adivinhei-a: “É, Lena, é melhor do que no Havai.” O Chichorro ofereceu-lhe outro quadro: dois homens lutando na rua. Já te ouvi, Lena, nada será dado.

Pela casa, fotos da Lena, a mulata, a preta, a outra, a tão nossa, de bata branca ou de bata verde de cirurgiã, sempre no centro, sempre a mandar, com alunos ou jovens médicos à volta. Ela sabia que ela era mais do que ela, era um símbolo, parte de uma conquista que se ia fazendo. Muitos só viram isso, e já só por isso ela era grande. E muitos viram a Dra. Helena Lopes da Silva, a sempre disponível para os amigos, pensávamos ser por nós, a ser simplesmen­te ela, só ela. Isto é, a abandonar-nos nas urgências do Santa Maria para agarrar na mão de uma velha solitária e com ela ficar. Lena querida, foi bom, tão bom, ser teu amigo. Mas mais do que eu quem soube, mesmo, de ti foi a velha solitária. Nunca me enganaste.

A Lena juntava-nos nas casas em que viveu por Lisboa. Tocatinas, chamava às noites em que aparecia a Maria Alice e o Tito Paris a cantar, e antes deles o Bana e a Cesária. A casa da Lena era um museu onde ardia, para não desaparece­r, o mundo mulato que acreditava ser o futuro.

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