Diário de Notícias

O CAMPEÃO QUE COMEÇOU AOS... 25 ANOS!

Num número dedicado à bicicleta é obrigatóri­o falar da vida de Joaquim Agostinho, que fez do ciclismo uma forma de superação pessoal, tornando-se o herói nacional que o país não esquece.

- Nuno Costa Santos TEXTO

Torna-se fastidioso enumerar os feitos do craque do ciclismo Joaquim Agostinho, nascido a 7 de abril de 1943. São tantos e incluem tantas provas que o leitor, ao lê-los aqui, iria ficar estafado, como se tivesse feito a maratona sem parar para beber um refresco. Olhemos para o melhor ciclista português de sempre, terceiro lugar numa Volta à França, como homem e figura, descoberta aos 25 anos por João Roque, vencedor da Volta a Portugal. Roque viu-o passar a uma velocidade rara numa “pasteleira”, ao tempo veículo muito usado pelos trabalhado­res para chegarem ao trabalho. E era isso que o Brejenjas, como se tornou conhecido mais tarde (à conta do nome da localidade onde nascera), estava a fazer: a dirigir-se para a propriedad­e onde trabalhava, a Quinta das Fontainhas. Apesar da aceleração, já levava no lombo a experiênci­a da Guerra Colonial, onde fora ferido em combate.

Depois de confirmar a sua velocidade numa prova local, Roque conseguiu convencer o Sporting a aceitá-lo como atleta. E, a partir daí, como lembra Vítor Cândido, autor de um programa recente para a Bola TV sobre o velocista, foram várias as vezes que teve de ouvir o conselho “tem calma, pá” por causa das suas arrancadas tremendas. (Imaginemos alguém a dizer a Cristiano Ronaldo: “Não marques tantos golos, pá!”) Pode afirmar-se que Agostinho não deu grande atenção aos pedidos de quem não queria perturbar os lugares conquistad­os pelas estrelas da companhia. Ficou em segundo lugar na Volta a Portugal, venceu o Campeonato Nacional de Fundo e foi convocado para fazer parte da seleção portuguesa no Campeonato do Mundo. Com 25 anos.

O seu ímpeto a pedalar tinha uma consequênc­ia recorrente: a queda com estrondo. Muitas vezes, ao longo dos anos, caiu. “Dizia-se que não sabia andar de bicicleta”, comenta o jornalista José Goulão. Indiferent­e à crítica fácil e ao preconceit­o, aos poucos foi ganhando o respeito da imprensa e dos companheir­os. E, com a primeira ida para França, contratado pelo empresário Jean de Gribaldy, ganhou primeiro a indignação (“tem calma, pá”) e depois a admiração do ciclista genial Eddy Merckx, conhecido como “o canibal”. Na viagem de avião cruzou-se com Amália Rodrigues, que, como conta o livro História do Ciclismo em Portugal, de Miguel Barroso, lhe terá dito: “Tem cuidado com as raparigas. Elas são belas e vão tentar seduzir-te. Mentaliza-te de que aquilo que elas pretendem é incompatív­el com a tua profissão de ciclista.” Acatou o conselho de Amália. No caso teve calma, mantendo uma existência caseira e uma ligação até ao fim à família. Fernando Correia conta que era frequente, no fim das provas, ter a mulher à espera e de irem logo os dois para o hotel.

É de lembrar que Ana Maria era filha do dono da quinta onde trabalhava. Fernando Correia conta a história da conquista amorosa no livro Memória de um Campeão: depois de Ana ter deixado cair um anel num local profundo da quinta, recuperou-o por causa da insistênci­a de Joaquim em encontrá-lo. “Foi a prova suprema de amor.” Teve dois filhos e com um deles, Rita, viveu um episódio duro. O quarto onde estava incendiou-se por causa dos aquecedore­s e foi Agostinho que apagou o fogo. Fê-lo com as mãos, ficando ferido. Mesmo assim, não faltou ao dever das provas e à ambição de se superar. “Nas subidas era inacreditá­vel”, sublinha Goulão.

Joaquim era muito terreno na sua comunicaçã­o com os outros. Mesmo com os treinadore­s. Dizia: “Eu é que sei o que é isto da bicicleta. Eles não sabem.” São conhecidos os seus inúmeros problemas de dopping, que tiveram consequênc­ias nas classifica­ções. Negou que ingeria substância­s, mas a verdade é que os testes revelavam-se positivos.

É importante referir a sua condição de emigrante numa altura em que muitos emigrantes em França viviam em condições miseráveis nos bidonville­s, os bairros de lata franceses. Vítor Cândido lembra-se bem da alegria que dava aos emigrantes. Ainda hoje a existência de um busto de Joaquim Agostinho na etapa do Alpe d’Huez tem importante significad­o para a comunidade portuguesa.

A morte do ciclista, aos 41 anos, num momento em que havia voltado a representa­r o Sporting, é o derradeiro episódio trágico de uma vida que teve tanto de glória como de sombra. Na Volta ao Algarve, de camisola amarela vestida e sem capacete, foi perturbado por um cão que atravessou a estrada e caiu, batendo com a cabeça. Ensanguent­ado, conseguiu chegar à meta através da ajuda de colegas de prova. A última meta da sua vida. Mais do que ir para o hotel, precisava de um hospital. Em Loulé nenhum médico estava de serviço e em Faro não existia serviço de neurologia. Foi transporta­do de ambulância e o derrame cerebral transformo­u-se em coma. No Hospital da CUF sujeitou-se a uma operação tardia.

O funeral revelou-se um acontecime­nto sem paralelo para quem o viveu, revelando o ídolo maior e o símbolo que era para gentes muito diversas. As ruas encheram-se, o trânsito foi cortado, comparecer­am as personalid­ades (Fernando Correia recorda-se de ter visto Beatriz Costa). Hoje é celebrado por muitos, do jornalismo às artes. José do Carmo Francisco, antigo jornalista, escreveu um poema que termina assim: “E nas pistas do céu da nossa Estremadur­a/ Há de haver corridas muito bem organizada­s/ Para venceres com um sorriso de amargura/ Longe do país, longe dos cães e das estradas”.

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O seu ímpetoa pedalar tinha uma consequênc­ia:a queda com estrondo. Acabou por morrernuma.

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