O cronista de bicicleta
schk tschk tschk tschk tshck O som dos pedais”. Era o primeiro verso de um poema do meu primeiro livro. Escrevi-o devia ter 20 anos, nem 20 anos devia ter. “Aqui vou eu a pedalar sempre a bicicleta/ Pela estrada a atravessar a floresta a atravessar/ O sonho e a luz do sol por entre as árvores”.
Era a bicicleta, literal e literária. A metáfora da bicicleta. “Ah, as metáforas...”, exclamava o carteiro no filme com o seu nome (Il Postino) e explicava o poeta de nome Pablo (Neruda): “As metáforas...” Ambos reais e metafóricos, um do outro, carteiro e poeta, escrever poemas, entregar cartas.
A bicicleta faz parte da imagem romanceada, da poética do carteiro. Do Mario Ruoppolo, il postino, ao François (Senhor Hulot avant la lettre) de Jacques Tati, uns anos antes já eternamente inadaptado à modernidade postal e geral.
La bicyclette, cantava o Yves Montand, e a música ondulava veloz como uma bicicleta.
“O homem que pedala que ped’alma/ Com o passado a tiracolo,/ Ao ar vivaz abre as narinas:/ Tem o por vir na pedaleira”, escrevia o Alexandre O’Neill, no poema “O Ciclista”.
Por exemplo, um cronista: é um ciclista a dar uma volta ao assunto.
A crónica é sempre um pequeno passeio, uma curta digressão pelo bairro das idiossincrasias do presente, uma divagação cíclica (crónica), um diário de bicicleta, no caso, semanal. “Tschk tschk tschk tschk tshck O som dos pedais”. É a minha nona crónica no DN. A primeira em que escrevo sobre escrever a crónica.
Normalmente, escreve-se sobre escrever crónicas quando não se sabe o que se há de escrever. Cronicamente acontece.
Mas não é o caso. Nesta crónica o tema é sempre o do suplemento 1864. Nesta edição: a bicicleta.
Pode é não se saber que volta dar ao tema. Aqui entra o nome da crónica: A Volta ao Assunto.
O assunto conta, mas o que mais conta é a volta. Hoje o assunto é a bicicleta. Mas o que me interessa é a crónica como uma (pequena e solitária) volta a Portugal em bicicleta (aqui entra o som do inesquecível genérico televisivo da Volta a Portugal em Bicicleta).
A visão que temos do mundo depende do meio de transporte que escolhemos para o percorrer e da velocidade a que nos deslocamos nele.
Quando o Ferreira Fernandes (Joaquim Agostinho) me desafiou para escrever uma crónica todas as semanas, senti-me um ciclista fora de forma, cheio de gorduras, sem músculo. Um mono. Um monociclista. Sem pedalada.
Mas se escrever é como andar de bicicleta, aqui estou eu todas as semanas à procura de um equilíbrio e a tentar encontrar a minha velocidade.
“Pode ser que eu me despiste e fique/ Imóvel a bicicleta no chão de roda/ Para o ar a rodar sempre... Tschk tschk tschk tschk tshck O som dos pedais”. Houve tempos e lugares em que os jornais eram distribuídos de bicicleta por ases ardinas dos pedais. Hoje um jornal é um objeto digital imaterial que só se torna tátil quando faz uma edição especial.
O jornalista e escritor Walter Isaacson uma vez fez a seguinte provocação:
“Imaginemos que nos últimos 550 anos a nossa informação nos tinha sido entregue de forma digital através de ecrãs. Depois, um qualquer Gutenberg moderno tinha inventado uma tecnologia que permitia transferir estas palavras e imagens para páginas de papel (...) que podíamos levar connosco para o pátio, para o banho ou para o autocarro. Certamente ficaríamos encantados com este enorme passo em frente e iríamos prever que esta tecnologia um dia seria capaz de substituir a Internet”.
Ecologia das florestas à parte, tem a sua graça.
Imagino nesta vertiginosa era digital que ainda mal iniciámos, agora que se passou a ver as séries de televisão em binge-watching, que a literatura voltava a ser impressa em papel e em fascículos, à suivre, em continuação.
Passaríamos a ter revistas e jornais com romances, novelas e sequências literárias de diferentes autores, mas só um capítulo de cada vez, deixando os leitores à espera uma semana pela continuação. Seriam vendidos em quiosques, livrarias e cafés onde os leitores se cruzariam nos dias de saída das suas publicações favoritas e conversavam sobre o que estavam a ler.
A esta junto outra provocação que fiz há uns anos:
“Foram fazendo do jornalismo, como da história – de que ele é ‘o primeiro esboço’ – uma variante literária. A realidade foi abandonada como um romance que já ninguém lê, e os jornais foram sendo habitados por histórias e personagens cada vez mais implausíveis.” “Tschk tschk tschk tschk tshck O som dos pedais”. Quase a completar a minha volta, regresso ao assunto da bicicleta e à poesia da errância do ciclista.
Distraio-me com um pássaro que me atravessa a crónica.
É uma gralha. Só pode ser uma gralha, um pássaro que era para ser outro.