Diário de Notícias

O cronista de bicicleta

- Nuno Artur Silva

schk tschk tschk tschk tshck O som dos pedais”. Era o primeiro verso de um poema do meu primeiro livro. Escrevi-o devia ter 20 anos, nem 20 anos devia ter. “Aqui vou eu a pedalar sempre a bicicleta/ Pela estrada a atravessar a floresta a atravessar/ O sonho e a luz do sol por entre as árvores”.

Era a bicicleta, literal e literária. A metáfora da bicicleta. “Ah, as metáforas...”, exclamava o carteiro no filme com o seu nome (Il Postino) e explicava o poeta de nome Pablo (Neruda): “As metáforas...” Ambos reais e metafórico­s, um do outro, carteiro e poeta, escrever poemas, entregar cartas.

A bicicleta faz parte da imagem romanceada, da poética do carteiro. Do Mario Ruoppolo, il postino, ao François (Senhor Hulot avant la lettre) de Jacques Tati, uns anos antes já eternament­e inadaptado à modernidad­e postal e geral.

La bicyclette, cantava o Yves Montand, e a música ondulava veloz como uma bicicleta.

“O homem que pedala que ped’alma/ Com o passado a tiracolo,/ Ao ar vivaz abre as narinas:/ Tem o por vir na pedaleira”, escrevia o Alexandre O’Neill, no poema “O Ciclista”.

Por exemplo, um cronista: é um ciclista a dar uma volta ao assunto.

A crónica é sempre um pequeno passeio, uma curta digressão pelo bairro das idiossincr­asias do presente, uma divagação cíclica (crónica), um diário de bicicleta, no caso, semanal. “Tschk tschk tschk tschk tshck O som dos pedais”. É a minha nona crónica no DN. A primeira em que escrevo sobre escrever a crónica.

Normalment­e, escreve-se sobre escrever crónicas quando não se sabe o que se há de escrever. Cronicamen­te acontece.

Mas não é o caso. Nesta crónica o tema é sempre o do suplemento 1864. Nesta edição: a bicicleta.

Pode é não se saber que volta dar ao tema. Aqui entra o nome da crónica: A Volta ao Assunto.

O assunto conta, mas o que mais conta é a volta. Hoje o assunto é a bicicleta. Mas o que me interessa é a crónica como uma (pequena e solitária) volta a Portugal em bicicleta (aqui entra o som do inesquecív­el genérico televisivo da Volta a Portugal em Bicicleta).

A visão que temos do mundo depende do meio de transporte que escolhemos para o percorrer e da velocidade a que nos deslocamos nele.

Quando o Ferreira Fernandes (Joaquim Agostinho) me desafiou para escrever uma crónica todas as semanas, senti-me um ciclista fora de forma, cheio de gorduras, sem músculo. Um mono. Um monociclis­ta. Sem pedalada.

Mas se escrever é como andar de bicicleta, aqui estou eu todas as semanas à procura de um equilíbrio e a tentar encontrar a minha velocidade.

“Pode ser que eu me despiste e fique/ Imóvel a bicicleta no chão de roda/ Para o ar a rodar sempre... Tschk tschk tschk tschk tshck O som dos pedais”. Houve tempos e lugares em que os jornais eram distribuíd­os de bicicleta por ases ardinas dos pedais. Hoje um jornal é um objeto digital imaterial que só se torna tátil quando faz uma edição especial.

O jornalista e escritor Walter Isaacson uma vez fez a seguinte provocação:

“Imaginemos que nos últimos 550 anos a nossa informação nos tinha sido entregue de forma digital através de ecrãs. Depois, um qualquer Gutenberg moderno tinha inventado uma tecnologia que permitia transferir estas palavras e imagens para páginas de papel (...) que podíamos levar connosco para o pátio, para o banho ou para o autocarro. Certamente ficaríamos encantados com este enorme passo em frente e iríamos prever que esta tecnologia um dia seria capaz de substituir a Internet”.

Ecologia das florestas à parte, tem a sua graça.

Imagino nesta vertiginos­a era digital que ainda mal iniciámos, agora que se passou a ver as séries de televisão em binge-watching, que a literatura voltava a ser impressa em papel e em fascículos, à suivre, em continuaçã­o.

Passaríamo­s a ter revistas e jornais com romances, novelas e sequências literárias de diferentes autores, mas só um capítulo de cada vez, deixando os leitores à espera uma semana pela continuaçã­o. Seriam vendidos em quiosques, livrarias e cafés onde os leitores se cruzariam nos dias de saída das suas publicaçõe­s favoritas e conversava­m sobre o que estavam a ler.

A esta junto outra provocação que fiz há uns anos:

“Foram fazendo do jornalismo, como da história – de que ele é ‘o primeiro esboço’ – uma variante literária. A realidade foi abandonada como um romance que já ninguém lê, e os jornais foram sendo habitados por histórias e personagen­s cada vez mais implausíve­is.” “Tschk tschk tschk tschk tshck O som dos pedais”. Quase a completar a minha volta, regresso ao assunto da bicicleta e à poesia da errância do ciclista.

Distraio-me com um pássaro que me atravessa a crónica.

É uma gralha. Só pode ser uma gralha, um pássaro que era para ser outro.

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