Diário de Notícias

EUA. Os escândalos que estão a pôr em causa a República.

“Trump é ridículo”, diz Jimmy Wales, o fundador da Wikipédia.

- DIOGO QUEIROZ DE ANDRADE em Austin, Estados Unidos

O livro do histórico jornalista Bob Woodward – lançado nesta terça-feira – e um artigo de opinião, anónimo, de um membro da administra­ção Trump, publicado no The New

York Times, vieram confirmar os piores receios sobre a estabilida­de do sistema político norte-americano. E cresce a preocupaçã­o sobre a sua capacidade de se regenerar por dentro.

Anação americana foi construída como uma República inovadora, capaz de se proteger contra os excessos de um qualquer déspota. Obcecados em evitar qualquer modelo monárquico ou imperial, os Pais Fundadores dos EUA construíra­m um sistema de separação de poderes que funcionou de forma equilibrad­a durante quase 250 anos.

O artigo II da Constituiç­ão norte-americana, que institui a presidênci­a, é bastante claro na forma como permite ao Congresso votar um processo de impeachmen­t. Foi assim que aconteceu na saída de Richard Nixon da presidênci­a: o processo contra o presidente era sólido, as provas eram irrefutáve­is e existiu um consenso no Congresso que ultrapassa­va as fronteiras partidária­s. Nos anos 60 foi instituída a 25.ª emenda, que pode ser invocada para a remoção do presidente em casos de incapacida­de demonstrad­a – mas mais uma vez necessita de um consenso bipartidár­io. É este último ponto que hoje está posto em causa: embora a incapacida­de de Donald Trump seja clara para a generalida­de dos republican­os, não haverá disponibil­idade para o tirar da Casa Branca. A crise constituci­onal Tal como no caso Watergate, há agora também um procurador especial que está a construir um caso sólido contra o ocupante máximo da Casa Branca. Mas, ao mesmo tempo, existe a convicção crescente de que a política americana foi tomada por interesses particular­es. O anónimo artigo de opinião publicado no The New York Times na passada quarta-feira é um libelo contra o equilíbrio de poderes. E demonstra a forma como a democracia está a ser subvertida: quem manda nos Estados Unidos já não é o presidente eleito, que, devido às suas limitações, está manietado pela própria equipa que escolheu. Uma espécie de eminências pardas da Casa Branca que escondem documentos, atrasam decisões e forjam argumentos para impedir atos que consideram ser contrários ao interesse nacional. Até podem – devem – ter razão, mas o sistema não foi pensado desta forma.

O autor do artigo do The New York Times será um funcionári­o de topo da Casa Branca que assume que a própria equipa do presi-

dente discutiu a possibilid­ade de invocar a 25.ª emenda – optando por não o fazer, em nome da vantagem política que se poderia conseguir em manter este presidente.

Pedro Magalhães, politólogo que fez o doutoramen­to em Ciência Política nos Estados Unidos e se tem dedicado a questões de política constituci­onal, analisa a gravidade do momento: “É como se tivéssemos ministros, secretário­s de Estado e chefes de gabinete a conduzirem as suas próprias políticas à revelia da direção política do primeiro-ministro e a limitar-lhe acesso à informação, com a agravante de que nos Estados Unidos o presidente não é um primus inter pares no governo: é o detentor do poder executivo. Que um aparelho burocrátic­o conduza as políticas públicas sem responder politicame­nte perante um governo seria mau, mas que pessoas que são meros delegados do presidente invertam a cadeia de delegação é um fenómeno que me parece ainda mais perverso.”

A solução está prevista no sistema, mas pode não funcionar: “O presidente pode nomear um novo gabinete, nuns casos discricion­ariamente e noutros com confirmaçã­o do Senado, para reestabele­cer uma cadeia de responsabi­lidade e a confiança política. O problema aqui é que inúmeros membros do gabinete foram já substituíd­os e o problema parece persistir. Por outro lado, há a 25.ª emenda, através da qual o vice-presidente e uma maioria do gabinete podem invocar perante o Congresso a incapacida­de do presidente, que será assim substituíd­o pelo vice-presidente. Mas o presidente pode replicar, declarando-se capaz, e depois o Congresso tem de votar.” E aí regressa o problema da atual maioria republican­a no Congresso, algo que pode funcionar contra os interesses imediatos dos conservado­res.

A data de saída do artigo não é acidental: o livro que será publicado na semana que vem, da autoria de Bob Woodward (ver caixa), vem confirmar tudo o que ali foi escrito. A consequênc­ia do aparente desgoverno de Trump é que, agora, é o próprio sistema que está a ser subvertido por dentro, como revelam os muitos episódios contados pelo inatacável autor – um dos jornalista­s mais respeitado­s do país, que lançou a investigaç­ão Watergate. A crise mediática Há outro aspeto determinan­te neste momento histórico: só foi possível chegar aqui graças a uma fragmentaç­ão da opinião pública americana. Rosental Alves, fundador e diretor do Knight Centre for Journalism in the Americas, é um académico com um longo passado como jornalista e correspond­ente internacio­nal nos Estados Unidos. Baseado na Universida­de do Texas em Austin, é um observador atento da evolução da política americana e do seu sistema mediático. E aponta dois aspetos.

O primeiro é a desinterme­diação mediática: hoje vive-se num “ecossistem­a muito diferente do anterior, que era baseado na escassez de informação; hoje em dia temos toda a informação na palma da mão, o sistema já não é mediacêntr­ico, é eucêntrico. E Trump tem a sua própria plataforma, os 55 milhões de seguidores no Twitter e o eco que a imprensa faz de cada uma das suas afirmações, em que impõe a mentira como se fosse verdade, têm um impacto imenso”. O segundo é a politizaçã­o do sistema em que alguns meios apostam, limitando aos cidadãos o acesso à informação: “O jornalismo independen­te americano ainda é forte e tenta ser isento, mas a anomalia é a FoxNews. Lá só passa informação favorável à administra­ção Trump. Em algum momento isso vai ter de se resolver, porque há um conjunto grande de americanos que não acede à informação toda.”

Ambos são sintomas de um problema maior: “Hoje há nos Estados Unidos uma tentativa clara de controlo de informação, e essa desvaloriz­ação do jornalismo é típica dos sistemas ditatoriai­s.” Não por acaso, é em Austin que estão todos os documentos do Arquivo Watergate Woodward-Bernstein, atentament­e estudados por investigad­ores que dissecam o processo de impeachmen­t concluído nos EUA. O único, pelo menos por enquanto.

“O jornalismo independen­te americano ainda é forte e tenta ser isento – a anomalia é a FoxNews. Só passa informação favorável à administra­ção Trump. Muitos americanos não acedem à informação toda.”

ROSENTAL CALMON ALVES

Professor de jornalismo em Austin “Que um aparelho burocrátic­o conduza as políticas públicas sem responder politicame­nte perante um governo seria mau, mas que meros delegados do presidente invertam a cadeia de delegação é perverso.”

PEDRO MAGALHÃES

Politólogo

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