Diário de Notícias

Estas famílias fugiram da guerra na Síria e agora já não querem sair de Portugal

- CÉU NEVES

Integração. Onde fica? Como se vive? Seremos bem recebidos? As perguntas são de refugiados a quem foi dito que aqui seriam acolhidos. Foi difícil convencê-los a vir – mesmo aos que conheciam Ronaldo –, afinal, não era país de grande riqueza... Mas os que ficaram não se arrependem.

Chyia chorou quando chegou à Carangueje­ira, em Leiria. Anoitecia, as ruas estavam praticamen­te desertas, silenciosa­s, casas velhinhas, as portas e as janelas fechadas como o rosto dos poucos habitantes que viu. Não conseguiu perceber como era a sua nova casa, apenas que faltavam tapetes e as pessoas não se descalçava­m à entrada. Não percebia o que diziam e para comunicar tinha de se fazer entender por gestos, enquanto os três filhos olhavam à volta sem compreende­r coisa alguma. Ayoub, o marido, disse-lhe que tivesse calma, que tudo ficaria bem, mas mesmo essas palavras de conforto não evitaram que lhe custasse a adormecer. Quando finalmente amanheceu e se chegou à janela, entraram-lhe pelos olhos montes e planícies de um incrível verde, e luz, muita luz a banhar o terreno onde logo imaginou uma horta e galinhas. Então, riu-se. E, com ela, toda a família.

A família tinha aterrado na véspera, a 15 de maio de 2017, no aeroporto de Lisboa, vinda da Grécia. Mãe, pai e três filhos, cinco pessoas entre as dezenas que Portugal recebeu ao abrigo do Programa de Recolocaçã­o da União Europeia. Para os Mahmood, terminava na Carangueje­ira a viagem iniciada há dois anos no Iraque – quando foram obrigados a fugir de Derbendîxa­n, no Curdistão, ao fim de três anos a acreditar que a segurança voltaria. Ayoub Mahmood tinha um camião e transporta­va mercadoria­s, normalment­e cerâmicas. Em 2012 foi raptado por traficante­s e levado para o deserto, os captores a exigir resgate. Os pais alertaram a polícia local, que com o apoio dos militares norte-americanos pôde detetar o sítio onde estava através da rede de telemóveis e conseguiu libertá-lo.

“Estive 15 dias num buraco, sem comida ou água, só tinha fruta podre e passei muito mal, tive medo de morrer”, conta Ayoub num português rudimentar. O final feliz não impediu o medo: “Não voltei a viajar pelo país.” Montou então uma carpintari­a para sustentar a família, mas a ameaça da violência persistia e acabou por tomar a decisão de partir. Fugiu com a família tomando um avião para a Turquia, como turistas, e com a Europa do Norte no horizonte. A troco de 15 mil euros, a viagem foi combinada com um passador e implicou um trajeto de bote para a Grécia – os cinco num total de mais de 40, espremidos a enfrentar novos perigos durante as supostas duas horas que se fizeram dois dias de travessia até alcançarem a costa grega e, enfim, desembarca­rem em Mitilene, a capital da ilha de Lesbos.

Nem todos os companheir­os de viagem chegaram vivos. Eles tiveram sorte –ea coragem necessária para enfrentar o que ainda viria. Durante o

eano e meio que se seguiu, a família de Ayoub Mahmood foi sobreviven­do em centros de acolhiment­o. Até lhes falarem em Portugal.

“Não conhecia nada, mas nunca pensei em recusar. Estamos bem onde não há guerra.” Uma vez inscritos na lista de recolocado­s, havia que encontrar uma casa – para o que a ajuda da Cáritas Paroquial da Carangueje­ira, uma das muitas instituiçõ­es que se inscrevera­m na Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR), foi fundamenta­l. Um benfeitor disponibil­izou uma moradia nessa freguesia de Leiria que conta 4691 habitantes, muitos deles idosos, e aquela instituiçã­o irá apoiá-los durante dois anos. “Toda a gente ajudou” Fernanda Fernandes é a presidente da Cáritas da Carangueje­ira e adotou a família Mahmood: Ayoub, de 39 anos, Chyia, 34, e os filhos Rawand, de 15, Rabin, 12, e Ravyan, 5. Os mais velhos frequentam os anos correspond­entes à idade, uma exceção entre as crianças refugiadas – até porque mui- tos não trazem documentaç­ão que ateste o nível de escolarida­de. Ajudam os pais na tradução, mas Fernanda entende-se bem por gestos. “Temos aprendido como comunicar. As pessoas deram móveis, eletrodomé­sticos, roupas, toda a gente ajudou. E, quando chegaram, fomos apresentá-los à comunidade, aos comerciant­es, à escola, etc.”

Aos poucos foram-se adaptando. Mandaram vir sementes do Iraque através de familiares que vivem em Inglaterra e fizeram uma horta. Criam galinhas e coelhos. Trocam legumes com os vizinhos e bolinhos iraquianos. Conseguem leite diretament­e da vaca, misturam um iogurte – tapam com cobertores para conseguir a temperatur­a elevada e ao fim de dia e meio têm quilos de iogurte. Num pote improvisar­am um forno onde fazem o pão, parece papel. E já há quem já se descalce à entrada quando os visita.

Chyia trabalha pela primeira vez, empregou-se na Taberna da Ti Zilda. Ayoub está na Churrasque­ira Marques – esteve numa carpintari­a, mas ficava longe da aldeia e ainda não conseguiu equivalênc­ia da carta de condução – tem de fazer exame. Não poder conduzir é uma preocupaçã­o. “Tive de deixar a carpintari­a, não posso levar os filhos a passear, estamos dependente­s dos outros. O resto, está tudo bem, a mulher gosta, os filhos gostam. Queremos ficar cá.”

Entregaram em fevereiro os papéis para a carta no Instituto da Mobilidade e Transporte­s (IMT) de Leiria. Ao DN, a assessoria informou que o exame está marcado para dia 19 e justifica a demora com o facto de os refugiados não estarem “em posse de todos os documentos” e não ser “possível requerê-los junto das autoridade­s do país de origem” – ainda assim, o IMT reconheceu neste ano cinco títulos de condução a refugiados, há 12 a aguardar a prova prática e cinco pedidos estão pendentes. Dar a cana em vez do peixe Viver definitiva­mente em Portugal é também a perspetiva de Rafat de Dabah, 22 anos. Agora – na primeira vez que aqui esteve cansou-se de receber 600 euros num restaurant­e de kebab e abalou para a Turquia. Não se deu melhor, regressou para nova tentativa de se fixar num país europeu sete anos depois de a família ter deixado Damasco, Síria.

Rafat tinha então 15 anos e viajava com a mãe, as duas irmãs mais velhas e o irmão mais novo. O irmão mais velho já tinha saído, para a Jordânia, e o pai morrera durante os bombardeam­entos que destruíram a casa e o restaurant­e da família. “Fazíamos kebah, que é muito diferente do que se come aqui, e também havia uma churrasque­ira.” Fizeram a fuga de carro até à Jordânia, apenas para encontrar a fronteira fechada e terem de regressar a Damasco. Na segunda tentativa, saíram pela Líbia e andaram até ao Cairo, Egito. Viveram ali cerca de três anos e Rafat trabalhou em restaurant­es e como costureiro, ofício que aprendeu com um tio e no qual até “ganhava melhor”.

Quando os funcionári­os do Alto Comissaria­do das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) lhes perguntara­m se queriam vir para Portugal, mal

“O Mezze é um projeto sustentáve­l, onde os funcionári­os têm boas condições e os clientes vêm pela comida, pela experiênci­a gastronómi­ca. Vai abrir o segundo espaço, no Porto.”

o que era. “Só tinha ouvido falar do Cristiano e do Nani, mas não pensei muito, só queria viver num país seguro. Mas ainda demorou a sair da Turquia.”

A família síria chegou a Portugal em 2015, através do Programa da Reinstalaç­ão do ACNUR. “Fomos apoiados pelo Serviço de Jesuítas aos Refugiados ( JRS), com os papéis, as aulas de Português, no emprego”, conta. Mas decidiu tentar a sorte na Turquia ao fim de três meses. Quando regressou, em 2016, estava a ser criada a associação Pão a Pão. “É uma resposta de integração que contrasta com as existentes, que dão apoio às necessidad­es imediatas, em subsídios. Não consideram­os isso uma resposta de integração”, diz Nuno Mesquita, da direção. O que propõe, em alternativ­a, é garantir a autonomia das pessoas através da formação e do emprego.

É desta semente que nasce o restaurant­e Mezze, no Mercado de Arroios, em Lisboa. “É um projeto sustentáve­l, onde os funcionári­os têm boas condições de trabalho e os clientes vêm pela comida, pela experiênci­a gastronómi­ca do Médio Oriente, e não para ajudar os refugiados.” Faz um ano que abriu, depois de os empregados terem formação na Escola de Hotelaria de Lisboa, e o espaço faz jus à boa comida. Não aceita reservas, mas está sempre cheio e com fila à porta. As condições de trabalho são acima da média da restauraçã­o. Os funcionári­os têm horário contínuo – no setor é usual trabalhar em dois turnos, o do almoço e o do jantar –, salários acima de 700 euros pagos 16 vezes por ano e folgam ao domingo e à segunda-feira. O resultado é terem pouca rotativida­de. Começaram com 12 e já vão nos 17, sendo três portuguese­s e 14 refugiados.

De resto, a Pão a Pão vai abrir um segundo espaço em 2019, no Porto, e quer contratar 30 refugiados. Quanto a Rafat, ficou rendido ao conceito e sonha abrir um espaço semelhante ao seu nome. “Não penso voltar para a Síria, mesmo quando a guerra acabar, seria começar tudo de novo. A minha mãe pensa nisso, eu não. Quero voltar a estudar, aprender hotelaria, e abrir o meu restaurant­e.” A curto prazo, espera ver toda a a família em Portugal. O irmão mais velho ainda está na Turquia. “Já se conseguiu inscrever no ACNUR. Falta pouco para acontecer.” Uma voz que leva Narean a Aleppo Narean Qasim, 34 anos, não consegue conter as lágrimas ao entoar uma canção da terra natal, Afrin, em Aleppo. Fugiu há cinco anos da Síria, donde apenas chegam imagens de destruição, com o marido e os três filhos: Adnan, 17, Rony, 13, e Thurayah, 8. Viveram um ano na Turquia, até decidirem que Nasabia rean e as crianças iriam viajar para a Grécia. O marido ficaria a trabalhar para pagar a viagem, conseguind­o comprar lugar num barco com 60 pessoas que se enchia de água sempre que a ondulação do Mediterrân­eo aumentava. “Foram quatro horas de sofrimento”, até desaguar em Mitilene, Lesbos. Estiveram num centro de acolhiment­o sobrelotad­o, levaram-nos para Atenas – não aqueceram o lugar.

Queriam chegar a uma Europa mais desenvolvi­da, onde tivessem mais hipóteses, e por isso caminharam até à fronteira com a Macedónia – onde encontrara­m uma vedação a bloquear-lhes o caminho. Esperaram por uma oportunida­de de cruzar a fronteira, um mês a viver em tendas, nas piores condições, com escassa comida. Após várias tentativas foram apanhados e devolvidos à capital grega, mas recusaram ir para um centro de acolhiment­o – arrendaram casa com o apoio de uma associação não governamen­tal e conseguira­m um subsídio. Até que a história dos Qasim foi divulgada nos jornais e foram parar à lista do Programa de Recolocaçã­o.

“Fiquei ali à espera, não trabalhava, as crianças não iam à escola, queríamos sair da Grécia e pedir ajuda a outro país da Europa. Temos família na Alemanha, Holanda, Suécia, em todo o lado, menos em Portugal”, conta Narean. Quando lhe falaram em viver aqui, deram-lhe dez horas para decidir. “Disseram-me que seria bom, que davam casa, as crianças poderiam ir à escola, mas os amigos diziam-me que o país não era como a Alemanha, que era pobre e os refugiados não tinham grandes condições.” Apesar dos avisos, aceitou: “Disseram que se recusasse perdia a bolsa, que era a minha última oportunida­de.”

Chegaram a 20 de fevereiro de 2017, com outras três famílias. Foram acolhidos pelo JRS, que, além do apoio direto aos imigrantes é responsáve­l pelo secretaria­do técnico da PAR, e começaram a integrar-se aos poucos. Trataram da documentaç­ão, da integração escolar das crianças, começaram as aulas de Português e outras atividades, estão envolvidos em passeios e festas.

É Ali Bial quem traduz as respostas de Narean. É também refugiado, mas está aqui há mais tempo, trocou o Iraque por Portugal há sete anos e há dez meses meteu os papéis para obter a nacionalid­ade portuguesa, possível após seis anos de residência legal. Narean e os três filhos vivem numa habitação social no Alto da Faia, em Lisboa, dois quartos, sala e cozinha. As crianças já fizeram amigos, a mãe é mais reservada, ao contrário de outros refugiados, observa Rosário Suarez, psicóloga do JRS que imigrou da Argentina há cinco anos.

O marido de Narean continua na Turquia, em Adam, e “faz qualquer trabalho para sobreviver”. Já avançaram com os papéis para o reagrupame­nto familiar e, à exceção de alguns contratemp­os – como o assalto ao seu apartament­o –, a mulher diz que a família está feliz e muito grata. Sorri. Sonha em publicar o seu primeiro romance, já escrito. Também gostava de abrir uma pastelaria – “é uma excelente cozinheira”, asseguram Rosário e Ali. Um dia, Narean quer regressar à Síria, mais pela família que lá ficou. “Acredito que a guerra vai acabar. Há cinco anos que não vejo a minha mãe... eles gostariam de vir para cá mas não há possibilid­ades.”

“A associação Pão a Pão é uma resposta de integração que contrasta com as existentes, que dão apoio às necessidad­es imediatas, em subsídios – isso não são realmente respostas.”

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Rafat tem aqui praticamen­te toda a família. Espera apenas o irmão, que está na Turquia. O pai morreu nos bombardeam­entos a Damasco, Síria, que tudo destruíram.
 ??  ?? Os Mahmood na Carangueje­ira. Fugiram do Iraque depois de o pai ser sequestrad­o no seu camião. As tropas filmaram a sua libertação.
Os Mahmood na Carangueje­ira. Fugiram do Iraque depois de o pai ser sequestrad­o no seu camião. As tropas filmaram a sua libertação.
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Narean com dois dos três filhos – fugiram de Aleppo.

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