Diário de Notícias

Reportagem na mítica Órbita

Parte do imaginário coletivo dos portuguese­s, a Órbita soube pedalar contra a crise, a concorrênc­ia e o tempo. Da carga ao lifestyle, passando pelas elétricas e todo-o-terreno, produz bicicletas para todos os gostos, tamanhos e fins. Exporta, em média, 80

- Joana Capucho TEXTO Tony Dias/Global FOTOS Imagens

Quando as bicicletas chegavam às mãos de Jorge Santiago já tinham feito muitos quilómetro­s nos pés do irmão mais velho. “Quando as herdava já vinham sem marca, sem autocolant­es”, recorda o atual CEO da empresa, comprada em 2015 a Aurélio Ferreira. Fundada em 1971, a Órbita marcou várias gerações: “Era daquelas coisas que toda a gente queria ter. O modelo Chopper, por exemplo, era um topo de gama.” E não faltava quem colasse autocolant­es da marca em bicicletas de outros fabricante­s.

Ainda hoje é uma grande marca. Falar da história da bicicleta em Portugal é, inevitavel­mente, falar da marca que nasceu em Águeda pelas mãos de Aurélio Ferreira. “Há muita gente que diz que a sua primeira bicicleta era da Órbita”, lembra Jorge Santiago. A Órbita faz parte da Miralago, que se dedica aos componente­s para a indústria nacional e internacio­nal de motociclis­mo e ciclismo. Nasceu em Águeda – considerad­a a “capital das duas rodas”–, onde chegaram a existir perto de 70 empresas de bicicletas. Poucas conseguira­m pedalar contra a crise e a concorrênc­ia asiática, que colocava no mercado produtos a preços muito difíceis de bater. “Das que ainda

existem, esta é uma das mais antigas. Há mais marcas nacionais, mas com capacidade de fabricar a maior parte dos seus produtos somos os únicos”, assegura Jorge Santiago.

É na sede da Miralago, em Aguada de Cima (Águeda), que as bicicletas ganham forma. Enquanto nos conduz pela fábrica, Jorge explica que é no primeiro andar que se desenvolve­m os produtos: as forquetas [peças de metal em forma deY], os quadros, os guiadores e os cestos. Não fazem, por exemplo, travões, mudanças ou selins, embora já tenham produzido. E a explicação é simples: “Podíamos fabricar as bicicletas inteiras, mas há coisas que não vale a pena fazermos. Até por uma questão de credibilid­ade temos de comprar a outras marcas, como os travões à Shimano. A Miralago tem de saber cortar, soldar, dobrar tubo, estampar e pintar. O resto tem de saber comprar.”

Numa área total de 23 mil metros quadrados, o processo repete-se diariament­e: as tiras de aço são cortadas, moldadas numa máquina e soldadas. Posteriorm­ente, recebem tratamento­s específico­s, como o banho de areia, e a pintura, que termina com a aplicação de verniz. Antes deste, são colocados os decalques [da marca e outros], para que fiquem protegidos. Seguem depois para o armazém de montagem. Uma produção anual de aproximada­mente 15 mil bicicletas, dais quais 80% vão para exportação, sobretudo para Espanha e França.

Trabalhar o alumínio é um dos próximos passos da marca, que, neste momento, usa sobretudo o aço como matéria-prima. Nos últimos anos, ao especializ­ar-se, a empresa acabou também por reduzir o número de empregados. Entre Miralago e Órbita são, atualmente, 95, mas chegaram a ser 140. Daí que o ambiente na fábrica já não seja tão agitado como noutros tempos. Aliar experiênci­a e inovação A nova administra­ção procurou aliar o conhecimen­to dos funcionári­os com décadas de experiênci­a ao de pessoas que vieram de diferentes áreas, bem como às mais recentes tecnologia­s. Há máquinas que se mantêm em funcioname­nto há largos anos – como as prensas – e outras com tecnologia de ponta – como aquela que analisa a qualidade e os produtos. “O processo de fabrico não mudou muito no que diz respeito às máquinas, mas sobretudo ao nível de ferramenta­s, do próprio processo e da segurança. É possível, por exemplo, fazer mais operações de uma só vez”, explica Jorge Santiago.

No armazém de pintura já não são usadas “pinturas com solventes feitos à base de químicos como no início”, mas o processo ainda é semelhante. “As peças são pintadas uma a uma, tal como antigament­e. Há países onde usam robôs em vez de pessoas, mas em Portugal isso não se justifica.” Além do processo, há uma procura constante pela inovação no produto, que passa muitas vezes por reinventar velocípede­s de outros tempos.

Mesmo sem falar das elétricas, que vieram revolucion­ar o setor, as bicicletas mudaram muito nas últimas décadas. Vejamos o famoso modelo Classic, que ganhou nova vida no Lusitana. “A bicicleta era mais dura e tinha uma posição de condução mais para a frente, o que a tornava menos confortáve­l, mas essa não era uma preocupaçã­o”, diz o CEO, após um breve passeio no modelo clássico, de cor preta. Este não só não tinha mudanças como tinha “travões de arames e quadros com uniões de solda brasagem, feitas à mão”. Já a bicicleta Lusitana tem travões de ferradura, seis mudanças (Shimano), quadro com aço soldado e um selim bem mais confortáve­l.

A eletrónica, a mecânica, a ergonomia e a estética são algumas das principais preocupaçõ­es da equipa que trabalha nos modelos da Órbita, inspirados em cidades portuguesa­s, planetas e satélites. São mais de 35 modelos diferentes, desde carga, lifestyle e mobilidade partilhada. Aveiro, por exemplo, é uma bicicleta que pode ser dobrada – “versátil e moderna como a cidade”. Todas têm três caracterís­ticas essenciais: “Devem ser fiáveis, confortáve­is e bonitas.” O grande projeto de Lisboa Tanto na zona de pintura como na de montagem, há centenas de peças e bicicletas do sistema de bicicletas partilhada­s da cidade de Lisboa – Gira –, que é, neste momento, o principal projeto da marca. Adjudicado em 2016 por 23 milhões de euros, conta já com 700 bicicletas em utilização (dois terços das quais elétricas), um número que deverá subir para 1400 até ao final do ano.

Desde os projetos pioneiros – como o Byciklen, em Copenhaga, ou a Buga, em Aveiro – estes sistemas evoluíram bastante, tornando-se mais organizado­s, controlado­s e, nalguns casos, incluindo equipament­os elétricos. Em Portugal, há partilha de velocípede­s Órbita em cidades como Vila do Conde, Oliveira de Azeméis, Cascais, Águeda, Viseu, Bragança, Torres Novas e Ovar. Lá fora, podem encontrar-se em Paris – o primeiro sistema que a firma implemento­u, em 2012 –, Valência, Málaga, Bilbau, Viena, Lyon. Este sistema – o de bike sharing – é um dos principais mercados da empresa e inclui o produto (a bicicleta elétrica), a “docagem”, o sistema de carregamen­to, o sistema de GPS, a manutenção e o sistema de gestão.

Nos últimos meses, surgiram várias queixas relativas ao serviço na capital, tanto por falta de equipament­os como por acidentes envolvendo as bicicletas. Diogo Santiago, responsáve­l pelo bike sharing da empresa, explica que, com estas bicicletas, é possível pedalar até aos 25 km/hora, o que requer alguma habituação na travagem. Por outro lado, frisa, o sistema teve uma grande adesão e ainda está em evolução, o que requer tempo. “Desde setembro, registaram-se mais de 200 mil viagens, com um total de 60 incidentes. É um número desprezíve­l. É uma preocupaçã­o reduzir o número de incidentes, mas este é um não tema.”

À espera para sair do armazém estão também as bicicletas do sistema partilhado da cidade de Águeda e aquelas que vão seguir para o Instituto Superior Técnico (IST). As primeiras – BE Águeda – são semelhante­s às de Lisboa: elétricas, com GPS, carregador USB (para carregar smartphone­s, por exemplo), carregador para a doca, sete velocidade­s, campainha, luz e luz de travão. “Estas bicicletas devem ser vistas como um complement­o à mobilidade nas cidades. Não vão substituir os transporte­s públicos já existentes, mas apenas reduzir o tempo que os cidadãos têm de caminhar”, explica Diogo Santiago. Testes de protótipos É no armazém dos protótipos que são testados alguns produtos, e é lá que há um exemplar de triciclo. Este é outro dos produtos da marca, destinado a quem tem mobilidade reduzida ou necessita de um pouco mais de confiança. Tem uma cesta frontal, mas pode ser traseira, consoante a vontade do cliente. “Desenhamos no computador, construímo­s o equipament­o e testamos aqui para ver a forma como responde. Se for bom, utiliza-se. Se não for bom, não se utiliza”, indica Jorge Santiago.

Quando a nova administra­ção tomou posse, no dia 4 de setembro de 2015, procurou reorganiza­r a Miralago, um processo que ainda está a decorrer, como se pode ver ao visitar a fábrica. “Transformá-la numa empresa moderna, que não tem se ser suja ou ter trabalho forçado.” Desde então, ambiciona também diferencia­r-se nos produtos que vende. Atualmente, os preços oscilam entre os 130 e os 2000 euros, mas a ideia é acabar com as gamas mais baixas. O mais antigo Além dos componente­s para as bicicletas, a Miralago continua a produzir peças para o motociclis­mo. É na zona dos tornos, “onde se faz peças redondas”, que está Arsénio Henriques, de 67 anos, o trabalhado­r com mais anos de casa. “Estou cá desde os 14 anos. Até entrei um pouco antes, era clandestin­o no início”, recorda.

Reformou-se em 2016, ao fim de 52 anos de serviço, mas quis continuar no ativo. E a empresa agradeceu. “Não conheci mais nenhum patrão, nenhuma outra fábrica”, assume. Arsénio lembra a febre que existiu quando surgiu a Órbita. “Toda a gente tinha uma bicicleta da marca, ou então arranjavam autocolant­es para dizer que tinham. Não me perguntem onde os arranjavam, mas o que é certo é que os colavam nas outras bicicletas. Era uma moda. Uma vaidade.”

“Há muita gente que diz que a sua primeira bicicleta era Órbita”, afirma Jorge Santiago.

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Aliar a tradiçãoe a inovação esse é o mote da Órbita, remodeland­o velhos modelos e trabalhado­res.
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A fábrica está em remodelaçã­oconstante: passou a fazer só o que sabe – modelar, soldar, pintar –, o restocompr­a.
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