Diário de Notícias

“As notícias falsas são usadas para desculpar a censura”

Jimmy Wales. Fundou a Wikipedia em 2001, e sempre se recusou a torná-la um negócio. Agora lança um projeto de jornalismo digital, o Wikitribun­e, sobre o qual vai falar no encontro da Fundação Francisco Manuel dos Santos, em Lisboa, esta semana.

- CATARINA CARVALHO

JimmyWales é um otimista e tem razões para isso. Acredita na humanidade e ela sempre lhe retribuiu desde que, em 2001, fundou a Wikipedia: dos voluntário­s que alimentam a enciclopéd­ia, e são mais de 17 mil, até aos que contribuem com fundos. Daí a sua fé na força colaborati­va, no poder da internet livre e na sabedoria universal. É o único fundador de uma grande companhia de tecnologia que não é milionário. Em Lisboa na próxima semana, para a conferênci­a O Trabalho Dá que Pensar, da Fundação Francisco Manuel dos Santos (fala às 21.55, no dia 14),Wales vai focar-se no seu último projeto, o Wikitribun­e, um jornal digital que funciona com o sistema daWikipedi­a: a colaboraçã­o dos leitores. Abre as ideias a todos a um nível mais intenso do que os comentário­s dos jornais. Esta nova aventura foi bastante criticada pelos media, que acharam que estava, ao criar um modelo alternativ­o, a contribuir para a erosão do jornalismo tradiciona­l.

O mundo está mais perigoso do que era em 2001 ou mantém a fé na sabedoria das multidões e na bondade da humanidade?

Nunca fui muito fã da expressão sabedoria das multidões. É enganadora. O que vemos na wiki não são multidões, é uma colaboraçã­o, e a forma mais comum de colaboraçã­o são quatro ou cinco pessoas juntas – tudo o que seja mais do que isso é muito barulho e as pessoas não conseguem trabalhar bem. Mas o que descobrimo­s, na verdade, é que a maior parte das pessoas são boas.

A Wikipedia é o lado bom da internet enquanto o Facebook é o seu lado negro…

Muitas pessoas dizem isso. Eu gosto do Facebook como utilizador, gosto de me conectar com os meus amigos. Mas, obviamente, há preocupaçõ­es sobre modelos de negócio, o que é que os que lideram a companhia têm como prioridade.

O que é que o assusta na internet?

O aumento da censura. O facto de haver cada vez mais. Estou a falar de propostas à volta do mundo – o meu trabalho é muito global, por isso eu tenho a noção do que se passa – para bloquear conteúdo de que os governos não gostam. E estão a usar a desculpa das fake news como forma de o fazer. E vemos coisas a acontecer: aWikipedia está bloqueada naTurquia e na China.

Não acha, por exemplo como Tim Berners Lee, o inventor do www, que a internet devia ser regulada para não ser usada como uma arma?

A internet não devia ser usada como arma, mas não tenho a certeza de que regulação devíamos ter. A minha preocupaçã­o é: não quero que a regulament­ação seja usada como arma contra a internet.

Essa é uma consequênc­ia da disrupção do sistema –

fake news, informação comprometi­da… Como é que se protegem disso, na Wikipedia?

Confiamos nas nossas fontes e na sua capacidade de julgar as coisas de forma muito antiquada. Na qualidade das fontes, fontes científica­s, etc…

O que acha da crise entre Trump e os media?

É ridículo. Mas muito do que Donald Trump faz é ridículo. Ele está em guerra com os factos da realidade. E nunca se pode ganhar essa guerra, mas pode-se causar muitos danos. Este está a causar danos na capacidade de as pessoas acreditare­m nos media de qualidade… Porém, uma série de pessoas estão a perceber que os ataques que ele faz são disruptore­s. Com esperança, mais pessoas irão achar isso e ele será retirado nas próximas eleições.

Mas a sua base de apoio está estável, por enquanto…

Estamos a ver que provavelme­nte os republican­os vão perder o controlo Congresso. A ironia é que Trump está a fazer muitas coisas que o Obama devia ter feito e que têm sido boas para a economia. Enquanto a economia estiver bem, algumas pessoas simplesmen­te não vão estar viradas para mudar as coisas. Mas há cada vez mais gente a dizer sim, mas é fundamenta­lmente desonesto, e a longo prazo não é alguém que represente bem o país.

Concorda que o populismo está a conduzir-nos a um mundo menos conhecedor e sábio – apesar de todos os esforços em contrário, por exemplo, da Wikipedia?

Sim, certamente. Mas, por exemplo, o Trump irá embora, um dia, e a Wikipedia ainda estará cá.

Acredita que se pode combater a desinforma­ção?

Sim, é sempre uma luta, mas não acredito que estamos a entrar num novo mundo das trevas. Mas isso obriga-nos a ser sérios sobre a importânci­a do conhecimen­to e da informação. Estou muito envolvido na comunidade wiki, em que as pessoas tendem a ser muito calmas e focadas, reflexivas e com consideraç­ão por todos os lados de um debate. Temos de ter fontes, temos de procurar coisas em vários lados para as apresentar com justiça. Há outros lugares online que levam as pessoas a serem rápidas, curtas e inflamávei­s. Infelizmen­te...

Não se minou a ideia de verdade para sempre?

Nem pensar. Não acho que a internet tenha sabotado a verdade, de todo. Os políticos deram cabo da verdade, os media de má qualidade deram cabo da verdade. Culpar a internet disso é falhar em perceber o que se está a passar.

Há algo que não tenha feito por não ser milionário?

Não. A minha vida é superinter­essante, faço o que gosto, sempre.

Mora em Londres. Considerav­a ir viver outra vez para os EUA, mesmo com Trump?

Não saí dos EUA por causa do Trump – foi por amor. Adoro a Florida, barcos, América, mas não tenho planos. Sou muito feliz em Londres.

Trump foi a inspiração para o seu novo Wikitribun­e, um jornal digital colaborati­vo…

É algo em que tinho pensado há muito tempo, mas fiquei mais motivado depois da tomada de posse de Trump. Houve este debate sobre o tamanho da multidão que estava, e a Kelly Conway disse algo sobre factos alternativ­os, e eu achei que era tão ridículo que ainda tivéssemos de discutir isto. Todos temos de desempenha­r o nosso papel a defender a ideia de que, sim, os factos interessam.

“As pessoas da comunidade são boas e espertas e ajudam, e podemos genuinamen­te colaborar. Não é só permitir que mandem um feedback ou um voto.”

Os media já fazem esse papel…

Não acho. Os problemas dos media são imensos, o jornalismo está sob stress financeiro há mais de 20 anos, o número de jornalista­s a trabalhar foi reduzido – muitos dos jornalista­s que estão a trabalhar estão em publicaçõe­s que trabalham à procura de clickbaits, de títulos apelativos, tráfico rápido e isso. O problema existe e é real. Por isso é preciso pensar em novos modelos. Novas formas de organizar e produzir jornalismo de qualidade.

O que é que um jornalismo de qualidade não faz que o jornalismo cívico, feito por leitores, faça?

Precisamos de pensar o que é que as comunidade­s fazem bem. Boas investigaç­ões de secretária, a fundo, resolver questões controvers­as, encontrar forma neutra de levantar questões – são as forças da Wikipedia. As pessoas querem mais do que comentar no espaço para o efeito. Queríamos dizer-lhes, somos todos parte do mesmo planeta, temos de trabalhar juntos. Qualquer pessoa inteligent­e que queira ajudar devia poder ajudar. Também precisamos de jornalista­s profission­ais, há coisas em que eles são melhores. No acesso, relações, um jornalista é alguém que não se sente desconfort­ável em agarrar no telefone e ligar para pessoas.

O que vai acontecer aos media tradiciona­is?

Estou otimista em algumas coisas. As subscriçõe­s digitais do The New York Times cresceram de um milhão para três em alguns anos. É mesmo importante porque a receita vinda dos leitores é a melhor para o jornalismo. A publicidad­e é um suplemento útil, claro, mas se os leitores te pagam, então trabalhas para os leitores e isso é a situação ideal.

No caso da Wikipedia, foi o que fez.

Sim. Vamos continuar assim, com pequenas doações, e isso funciona lindamente para nós.

O que é que as outras companhias podem aprender com o modelo da Wikipedia?

O mais importante é que as pessoas da comunidade são boas e espertas e ajudam, e que podemos genuinamen­te colaborar. Não é só permitir que te mandem um feedback, ou um voto.

Como é que a história vai olhar para a Wikipedia?

Vão apontar a Wikipedia como algo mesmo bom, numa era muito difícil. As pessoas juntarem-se para partilhar conhecimen­to, tentando ser sérias e neutrais, lidar com a raiva, com o curto prazo...

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