EU, O CHIMPANZÉ E ELA
Aminha primeira bicicleta aconteceu-me num cruzamento e preciso de contar os quatro cantos dele para montar, ou não, na minha história. O meu bairro tinha uma rua asfaltada. Ficava no planalto por onde Luanda entrava pelo mato dentro e no meu registo de batismo diz-se que nasci em “São Paulo dos Musseques”. Mas, então – falo dos meus 6 anos –, o lugar onde nasci já era um bairro. Como disse, já tinha uma rua asfaltada. De modernidade havia também uma caixa de ferro sólido, um cilindro vermelho com um boné de aba à volta, tudo de vermelho com sopé pintado a negro. Uma boca grande e um anúncio, em letras moldadas no ferro, dizendo o que a caixa lá fazia, naquela esquina da padaria Lafonense: “Correio”.
O sr. Kropkine, que tinha vindo de longe, como todos os colonos do bairro, mas, como o seu nome indicava, talvez ainda de mais longe, dizia que a caixa de correio era igualzinha às de Londres. Conto só para vos dar uma ideia do progresso que animava o meu bairro. Mais um pormenor: noutra esquina, a que dava também para minha rua, essa de terra, estava o Cine-Colonial, franco no nome e com bons filmes. O que são bons filmes? Aqueles que nos levam a conhecer o mundo.
Por exemplo, era dos bancos corridos em cimento e sem costas, mais próximos do ecrã, onde se sentavam os pés descalços, que havia maior interatividade com o enredo. No meu bairro nunca um índio chegava a surpreender o cowboy. O comanche podia arrastar-se, silencioso e de respiração cortada, mas os avisos dos espectadores – e quem gritava mais eram os pobres: “Rapaz, cuidado! Olha no trás!” – levavam a que o branco que espicaçava filosoficamente a fogueira depois duma jornada a cavalgar sacasse do Colt, resolvendo o traiçoeiro ataque. Aprendi no Cine-Colonial que a solidariedade dos que não têm nem sempre é dedicada aos seus iguais. Mas, confesso, só concluí isso mais tarde, recordando o episódio antigo – aos 6 anos bastava-me que todos estivéssemos com o meu herói, o de chapéu largo, botas e esporas.
Na terceira esquina, já do outro lado do asfalto, havia a Casa Sabú, loja de modas e alfaiataria com mãos de artistas bacongos, gente do norte – seria lá que eu faria as minhas primeiras calças de ganga importada. Mas isso seria mais tarde, a embaixada local do imperialismo, o Cine-Colonial, ainda precisava de mais meia dúzia de anos, tiros do Colt e menear de ancas de Elvis, para convencer que os jeans nos faziam cowboys. Do seu lado, à América já deviam ter chegado rumores sobre o desejo de rendição do meu bairro ao novo e maravilhoso mundo.
Enfim, a quarta esquina, um terreno vago. Tinha existido ali uma casa de colmo e telhado de chapa ondulada e o quintal fora varrido das suas árvores de sape-sape, fruta que o futuro me apresentaria com o nome de anona e graviola... Sape-sape, ficou-me sempre, mesmo quando os comi em mercado tailandês ou no Recife. Entretanto, esperava-se para aquela esquina outra modernidade, um prédio de dois andares. Eu tinha 6 anos e o meu bairro estava imparável.
Apresentadas as esquinas e antes de voltar ao que aqui me traz, quero lembrar que o cruzamento foi formado, além da famosa rua asfaltada, pela minha rua de terra batida. Pisada, aliás. Todas as quartas-feiras, pela tardinha, vinha do sertão uma marcha de vacas magras e infelizes, guardadas por dois negros de tanga e de varas longas. Elas sabiam ao que iam, para o matadouro, ao lado do porto. Das primeiras vezes ainda me armei em cowboy, fingindo cavalgar ao lado da procissão, mas a infelicidade delas ganhou-me, também fiquei a saber para o que elas iam. Havia ainda outra procissão, essa, anual: a marcha de Carnaval formada a partir dos musseques Lixeira e Sambizanga, a caminho da Baixa, passava pela minha rua. Os negros foliões a caminho da cidade branca, passando as terras mestiças e de fronteira que eram a minha rua, uma espécie de Macondo, antes de Gabriel García Márquez lembrar-se disso. Quando a guerra começou, as autoridades não se deixaram iludir e acabaram com a alegoria mascarada e atrevida.
Então, aquela esquina. Era abril, talvez maio, e eu tenho boas razões para o recordar. Aproveitando o descampado, aterrou um glorioso circo internacional, ou pelo menos espanhol. Assisti à chegada do camião Chevrolet, à montagem da tenda e dos andaimes de tábuas para a assistência. Vi um espetáculo, bati palmas à trapezista de meias de rede rasgadas, mas achei tristonho o leão. Numa manhã, sem espetáculo, eu e um amigo espreitamos a jaula, forrada de palha, tanta que o leão esquálido se perdia nela. Estranhamente não reagiu às pedrinhas que lhe atirávamos, até que um guarda nos enxotou.
O leão morreu de fome, apesar do movimento de solidariedade com bifes do meu bairro. O circo internacional acabou ali, na minha rua. Alguém partiu com o camião, a trapezista acabaria por se casar com o melhor lutador de luta livre do meu bairro e eu vi o chimpanzé a partir de mão dada com um camionista que o comprou. Sei que foi maio ou abril, porque faço anos em maio. Os meus pais ofereceram-me uma bicicleta. Olhei para ela, sorri, logo fechei a cara e recusei o presente: reconheci, pelo amarelo berrante, a bicicleta que vira, dias antes, cavalgada pelo chimpanzé, às voltas na arena do circo... Os meus pais não tiveram outro remédio senão empandeirar a bicicleta para onde eu não quis saber. Na minha vida deixei tanto para trás mas nada mereceu mais ser pendurado numa parede da minha sala – nunca me faltaria começo de conversa.