Diário de Notícias

O populismo latente na campanha Marques Vidal

- Catarina Carvalho

Há uma esperança: não teve efeito na opinião pública a polémica da escolha do novo procurador-geral da República. É, pelo menos, isso que dizem os estudos de opinião – o número dos que achavam que Joana Marques Vidal devia continuar PGR permaneceu inalteráve­l entre o início do ano e estas últimas semanas. Isto retirando o facto, já de si notável, de que haja sondagens sobre este assunto.

Talvez o povo seja, de facto, sereno. Ou, vamos ser ainda mais otimistas, adulto. Ou talvez o povo seja apenas realista, e portanto imune à conversa que elogia a tal justiça contra os ricos e poderosos. O povo sabe na pele que um processo continua a demorar em tribunal mais do que a maior parte dos bolsos podem aguentar. E a ideia de que a justiça serve os ricos em vez dos pobres toca-lhe de outra forma: a justiça continua a ser mais justa para quem tem mais capacidade de pagar uma boa defesa. Há mais justiça para quem tem mais meios para a aguentar.

Foi tudo isto que esteve ausente da discussão sobre se Joana Marques Vidal devia ficar ou sair. A avaliação da sua atuação foi feita através de sound bites nos media. Aliás, é possível que os holofotes desses grandes processos tenham até ajudado a pôr na sombra a crise da justiça que se mede, por exemplo, em prazos. Ninguém tira a Joana Marques Vidal o mérito de ter feito processos difíceis andar para a frente. Mas esses casos mais mediáticos não medem a aplicação da justiça como um todo, nem o seu papel numa sociedade melhor, mais justa. Operaciona­lizar a justiça para os ricos não tem nenhum efeito na justiça para os pobres. E talvez seja essa uma das razões por que o povo se esteja muito perto de “nas tintas” para se Joana Marques Vidal é substituíd­a ou não. Ou se é substituíd­a por uma outra magistrada do Ministério Público ou por um juiz ou por um advogado...

Eainda bem. Porque se não fosse assim, é possível que o povo tivesse reparado na mais incrível deriva populista que aconteceu em Portugal desde que o populismo se tornou a tendência política internacio­nal do momento. E seria muito perigoso que o povo aderisse aos argumentos dos que fizeram desta nomeação um ringue de boxe político, arena de lama partidária, sendo que nenhuma destas metáforas faz jus a todas as tristes figuras que se colecionar­am, dos políticos aos jornalista­s, opinadores e comentador­es.

Os mesmos que são sobranceir­os para com Donald Trump, Viktor Orbán, Jair Bolsonaro ou Matteo Salvini, que fazem esgares de nojo sobre o populismo e como é perigoso para o mundo… são talvez os mesmos que insinuam que há interesses que capturaram a escolha da nova PGR, apesar de ter sido feita pelos legítimos protagonis­tas. Que politizam a justiça.

Numa conversa informal esta semana, o novo embaixador britânico em Lisboa, Christophe­r James Sainty, que ainda nem sequer apresentou credenciai­s, tinha uma curiosidad­e: porque em Portugal não há movimentos populistas? Percebe-se a preocupaçã­o vinda de quem, embora não possa dizê-lo – na diplomacia real dos embaixador­es –, vive embrulhado no problema a que o populismo conduziu um país inteiro com o brexit.

É certo que há razões para permanecer­mos a salvo em Portugal, desde os ventos que afastam das nossas costas algarvias as barcaças que, vindas do Magrebe, nos trariam os imigrantes, até à concentraç­ão do protesto numa esquerda organizada mas conservado­ra, ou uma direita que se mantém aberta e cosmopolit­a. Mas talvez isto não dure para sempre. E quem tem responsabi­lidades políticas tem também o dever de estar mais atento ao perigo. E, sobretudo, não o usar como uma arma de arremesso. Até porque um dia se pode voltar contra si.

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