Governo de Santana garantiu barragens sem concurso
Na comissão de inquérito às rendas excessivas nenhum dos intervenientes do contrato feito em 2005 entre EDP e REN, que se tornou lei, se lembra de como surgiu. EDP recebeu a concessão das barragens que explorava sem concurso por um período extra de 25 ano
Ogoverno liderado por Pedro Santana Lopes estava, por aqueles dias, em gestão. Faltava menos de um mês para as eleições legislativas e o país entrava em modo de campanha eleitoral. Mas no dia 27 de janeiro de 2005 um outro acontecimento importante deixaria uma marca para o futuro – de tal maneira que hoje o governo (o quarto, depois do de Santana) tem de prestar explicações à Comissão Europeia.
Nesse dia, duas empresas com capitais públicos, a EDP e a REN, concluíram mais de uma dezena de contratos entre elas. Assinaram-nos José Penedos e Vítor Baptista, pela REN, e Pedro Rezende e Jorge Machado, pela Companhia Portuguesa de Produção de Eletricidade, da holding EDP. Só que uma das cláusulas (que acordavam os termos da “cessação antecipada” dos contratos de aquisição de energia, ou CAE) acrescentava um bónus: era garantido à EDP, “por prazo não inferior ao correspondente à vida útil dos equipamentos”, o direito de utilizar o “domínio público hídrico”. Ou seja, sem qualquer concurso público, a REN (que era a concessionária do direito) acordava ceder à EDP a utilização das barragens por mais 25 anos.
Poucos dias depois, a 9 de fevereiro, Manuel Lancastre, secretário de Estado do Desenvolvimento Económico, fez publicar em Diário da República um despacho que dava força legal aos acordos assinados entre a EDP e a REN. “Aprovo os acordos relativos à cessação antecipada dos contratos de aquisição de energia celebrados entre aquelas duas entidades.”
Com isto, a EDP ficou com uma garantia estatal que lhe atribuía, sem concurso público, o prolongamento da utilização das barragens. Este é precisamente o ponto fundamental do processo aberto pela Comissão Europeia contra Portugal: sem concurso público o Estado pode ter favorecido a empresa e perdido dinheiro.
Como o DN noticiou na semana passada, só em 2007 (mais de dois anos depois) é que o governo (de José Sócrates) formalizou a concessão – e por valores muito mais baixos do que aqueles que a EDP se propunha pagar.
A falta de memória
Esta garantia, de 2005, também não é explicada pelos protagonistas. Ouvidos na comis- são parlamentar de inquérito às rendas excessivas, dois dos signatários dos acordos disseram não se lembrar de quase nada. O presidente da EDP à época também não guarda memórias. E o secretário de Estado de Santana Lopes que oficializou o acordo, Manuel Lancastre (hoje professor na Universidade de Brown, nos EUA), não respondeu às perguntas enviadas pelo DN.
Enquanto questionava o ex-presidente da EDP, João Talone, o deputado que vai escrever o relatório da comissão de inquérito, Jorge Costa (BE), fazia um resumo da história: “Estamos a falar da possibilidade de estender por 25 anos adicionais a concessão do domínio hídrico a favor da empresa, sem concurso. Isto não é uma pequena coisa. Estamos a falar de uma quarta parte da capacidade produtiva que existia em Portugal naquela altura. Como é que o presidente da EDP não consegue recordar-se da forma como esses acordos foram negociados?”
João Talone respondeu: “Francamente, não tenho ideia de que isto fosse discutido. Achei que tinha sido uma negociação feita em 2007. Pelos vistos não terá sido...”
“Contra o interesse nacional”
Pedro Rezende, que era o presidente da filial da EDP que assinou os contratos, também não conseguiu explicar ao deputado Jorge Paulo Oliveira, do PSD, a razão para o acordo. “Esta cláusula nestes termos não assegura a equivalência com o que está na lei. É mais estranho ainda que esta cláusula apareça apenas num acordo que não teve escrutínio nenhum”, argumentou o deputado. “Eu não tenho consciência de ter havido essa alteração”, respondeu o ex-responsável da EDP.
“Não está a ser fácil obter respostas que façam algum sentido...”, queixou-se Jorge Costa. “Não foi matéria de grande discussão, na altura. Nem sequer recordava... Aquilo que me está a dizer, que é uma diferença legal, provavelmente a EDP, em vez de um direito de opção, passou a ter direito a solicitar...”, argumentou Rezende.
O deputado insistiu: “A lei previa a forma de cessar a concessão. Se isso tivesse sido feito, passaria a haver um concurso público. Era isso que dizia a lei. Essa hipótese é eliminada de uma forma explícita nos contratos. A dispensa de concurso público tem um valor, em si já é uma vantagem. Como foi negociada?” Mas a resposta não esclareceu: “Não houve negociação, que me recorde, sobre essa matéria.”
Talvez a melhor resposta de todas as que se ouviram, nesta semana, no Parlamento, seja esta de José Penedos, que presidia à REN, e assinou os contratos com a EDP: “O presidente de uma empresa como a REN assina muita coisa...” Pode até “ter dúvidas sobre o que estava a assinar”. Ou ter esquecido as próprias, hipotéticas, dúvidas: “Não tenho memória sequer de as ter tido [as dúvidas].”
José Penedos viveu por dentro todas as fases desta história, quer enquanto secretário de Estado da Energia (de Daniel Bessa, no governo Guterres) quer como administrador da REN. Tem uma explicação para a forma como os vários governos, desde Cavaco Silva, deram rendas e benefícios à EDP: “Recursos contabilísticos para efeitos de privatização.” E só tem uma crítica a fazer – a Manuel Pinho, ex-ministro do seu partido, o PS – pela forma como decidiu o valor das barragens, que a EDP pagou em 2007. “Eu vi, na altura, o despacho do senhor ministro da Economia e fiquei surpreendido. Mas a minha surpresa não deu para protestar. Fiquei convencido de que a extensão do domínio público hídrico, como foi feita, era contrária ao interesse nacional.”
“Fiquei convencido de que a extensão do domínio público hídrico, como foi feita, era contrária ao interesse nacional.”
JOSÉ PENEDOS