A direita definida pela esquerda
Foi a esquerda que definiu a direita portuguesa, que lhe identificou uma linhagem, lhe desenhou uma cosmologia. Fê-lo com precisão, estabelecendo que à direita estariam os que não encaram os mais pobres como prioridade, os que descendem do lado dos exploradores, dos patrões. Já perdi a conta ao número de pessoas que, por genuína adesão ao princípio ou por mero complexo social ou de classe, se diz de esquerda por estar ao lado dos mais vulneráveis. A direita, presumimos dessa asserção, está contra eles.
E fê-lo com um certo espírito magnânimo, como quem autoriza um sopro adversarial para animar a viagem. Não houve uma repulsa; pelo contrário, e por isso a estratégia é eficaz, houve indulgência, como quem dá cartas de alforria. Fez-se da direita algo de necessário, tornando a operação insuspeita de vocação antidemocrática. Sucede que as cartas de alforria são passadas nas condições que a esquerda dita, tentando que a direita não perturbe, que se limite a assegurar uma alternância enquanto se passeia pelos salões do regime.
Diz-se que há muito de inevitável nesta circunstância, porque a superação de uma ditadura de direita pareceria sempre mais acertada se feita nos antípodas. Não concordo. O horror ao vazio, que é muito nosso, ofereceria sempre vantagem a quem o pudesse preencher; e em 1974 só a esquerda estava em condições de preenchê-lo, com a direita a tentar camuflar-se de outra coisa qualquer. Se a direita moderada tivesse criado espaços políticos de oposição a Salazar, se tivesse preferido o confronto ao amuo, se não se tivesse aclimatado tão preguiçosamente ao Estado Novo, a história seria outra.
Mas não vale a pena perder tempo com isso porque, por questões geracionais, este colete-de-forças em que vive a direita não dura para sempre. É uma questão de tempo. O ponto está em saber se é possível antecipar esse tempo, acabar com o colete por ação e não por apodrecimento.
Há quem pense que sim, propondo um caminho que me parece armadilhado: o de bradar a palavra direita a todo o momento e o de buscar conflito ideológico com a esquerda em toda e qualquer questão. Intensifica-se um confronto, uma tensão, que em alguns casos chega a servir para ostentar, com orgulho, aquilo de que a esquerda tanto nos acusa, apenas para provocar, desestabilizar. A contrarresposta identitária de que aqui falei na semana passada não passa disso mesmo.
Nesse caminho, torna-se quase indiferente a proposta ou a mensagem, porque o importante é desacreditá-la vinda daquele mensageiro. Não importa se a proposta faz sentido, apenas faz sentido atacá-la vinda de quem vem. E por isso vemos gente a bramir contra ideias que aplaudiria se viessem do mensageiro certo.
Há até quem esteja disposto a ceder em valores essenciais, como a liberdade individual, apenas para poder ser um contraponto à esquerda, para se distinguir. Essa é uma casca de banana que a esquerda coloca vezes sem conta e em que a direita tantas vezes escorrega.
Trata-se de um caminho armadilhado, dizia, porque eterniza, em vez de eliminar, a definição que a esquerda foi fazendo da direita; há um reforçar da ideia de que o mundo se divide em dois, os bons e os maus – uma ideia infantil, binária, que não traz nada de bom, e que afasta, isola, quase ridiculariza os moderados: a moderação como colaboracionismo.
Não é esse o caminho para antecipar o fim desse colete de forças, até porque a distinção entre direita e esquerda, sendo relevante, é incapaz de descrever as respostas à maior questão do nosso tempo, de que já aqui falei: como lidar com a mudança?
Mas é um colete que urge destruir, pelo que volto a este assunto para a semana.
Advogado e vice-presidente do CDS