Os juízes, a “sedução mútua” e o sofrimento da vítima
Ocrime de violação sofreu várias alterações ao longo do tempo. A última das quais, em 2015, cria dois tipos de violação, um “mais grave” e outro “mitigado”. No primeiro caso estão as situações em que é usada “violência, ameaça grave ou colocação da vítima em incapacidade de resistir”; no segundo aquelas em que é constrangida ao ato “por qualquer outro meio”. A pessoa é violada nos dois casos – penetrada contra a sua vontade – mas no segundo, por estar em causa “apenas” não haver consentimento, o legislador achou que podia cortar a pena quase para metade: no tipo um é de três a dez anos, no tipo dois de um a seis.
Esta alteração ao CP, pretendendo ser moderna e de acordo com a Convenção de Istambul, mantém o espírito de antanho – aquele para o qual violação “a sério” é quando a vítima leva pancada de criar bicho, lhe apontam uma faca ou metem droga na bebida.
Nesta perspetiva de apoucamento de tudo o que não inclua a tal violência do tipo um, é digno de nota, e até contraditório com a atual redação do crime de violação, que o que se lhe segue no CP, o Abuso Sexual de Pessoa Incapaz de Resistência, tenha, quando há penetração, uma pena de dois a dez anos – ou seja, com o limite máximo igual ao da violação “mais grave”.
Daí que seja simultaneamente expectável e surpreendente encontrar na nota que a Associação Sindical dos Juízes Portugueses exarou em resposta às críticas ao acórdão que ficou conhecido como “da sedução mútua” e do qual é cossignatário o seu presidente, Manuel Soares, a seguinte frase: “Não é verdade que tivesse havido violação, que no sentido técnico-jurídico constitui um tipo de crime diferente, punível com pena mais grave.”
Que a acusação e condenação em causa foram por abuso sexual de pessoa incapaz de resistência foi dito em todas as notícias, pelo que não se percebe que está a ASJP a desmentir. Nem porque afirma que o crime de violação tem pena mais grave; como vimos, o “tipo dois” tem-na até bem mais baixa.
Por outro lado, mesmo um juiz muito viciado em juridiquês, se penetrado contra sua vontade, quando embriagado, não diz ao descrever a situação “olha, fui abusado sexualmente quando estava incapaz de resistência”. Dirá que foi violado, porque se sentirá violado. O nome dado ao crime no CP não altera a natureza do ato.
Mas a nota da ASJP não fica por aqui. Afirma: “Não é verdade que o tribunal tivesse considerado que o crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência ocorreu num ambiente de sedução mútua; essa qualificação refere-se ao contexto que antecedeu a prática dos crimes e que foi dada como relevante para a determinação da pena.”
Perdoem os meritíssimos; acham mesmo que a crítica a essa parte do acórdão se deve a crer-se que nele se diz ter havido sedução mútua enquanto a vítima estava a ser violada – desculpem insistir no termo – , inconsciente, na casa de banho da discoteca, pelos dois homens? Por favor. Toda a gente entendeu que a ideia é que houve “sedução mútua” antes das violações. E que isso atenua a culpa dos violadores.
O que quem criticou a decisão não percebe, e o comunicado não explica, quiçá por inexplicável, é, primeiro, onde foram os juízes buscar essa factualidade, porque não está vertida no acórdão – a não ser que baste dizer que a jovem esteve “a dançar na pista”, ou que estava de shorts ou que bebeu; segundo, em que medida, mesmo a ter existido “sedução mútua” (e com os dois, porque os dois a violaram), poderia tal contribuir para atenuar a pena de um crime que ocorre quando a vítima, como um dos agressores disse numa escuta, “está toda desmaiada”.
Esta forma de a ASJP fazer de conta que quem critica o acórdão não percebe de direito, de português ou de mero bom senso – nem conhece o histórico da legislação e dos tribunais portugueses em matéria de crimes sexuais contra mulheres e violência de género – serve apenas para justificar o que se segue: a acusação de que houve “tratamento sensacionalista” e que as críticas derivam disso, de “agendas políticas ou sociais” e das “expectativas de associações militantes de causas”. Esta afirmação, que visa colocar os tribunais num lugar de neutralidade, serenidade e rigor de que os comuns mortais estão vedados seria só patética se não evidenciasse a ingénua perversidade dos que só veem agendas nos outros – quando as críticas visam precisamente ajudar os magistrados a identificar e a consciencializar a agenda subliminar que resulta numa justiça discriminatória e machista.
Já era dose. Mas a ASJP, na sua fúria corporativa, termina acusando quem se indigna de “agravar ainda mais o sofrimento da vítima”. É bonito. Pena não terem uma linha – uma que seja – para citar do acórdão sobre esse sofrimento.
Todas as críticas contra decisões judiciais são ignaras e têm “agenda”. Já os juízes nunca militam em nada nem sofrem de viés. Graças a deus.
Jornalista