Diário de Notícias

Os juízes, a “sedução mútua” e o sofrimento da vítima

- Fernanda Câncio

Ocrime de violação sofreu várias alterações ao longo do tempo. A última das quais, em 2015, cria dois tipos de violação, um “mais grave” e outro “mitigado”. No primeiro caso estão as situações em que é usada “violência, ameaça grave ou colocação da vítima em incapacida­de de resistir”; no segundo aquelas em que é constrangi­da ao ato “por qualquer outro meio”. A pessoa é violada nos dois casos – penetrada contra a sua vontade – mas no segundo, por estar em causa “apenas” não haver consentime­nto, o legislador achou que podia cortar a pena quase para metade: no tipo um é de três a dez anos, no tipo dois de um a seis.

Esta alteração ao CP, pretendend­o ser moderna e de acordo com a Convenção de Istambul, mantém o espírito de antanho – aquele para o qual violação “a sério” é quando a vítima leva pancada de criar bicho, lhe apontam uma faca ou metem droga na bebida.

Nesta perspetiva de apoucament­o de tudo o que não inclua a tal violência do tipo um, é digno de nota, e até contraditó­rio com a atual redação do crime de violação, que o que se lhe segue no CP, o Abuso Sexual de Pessoa Incapaz de Resistênci­a, tenha, quando há penetração, uma pena de dois a dez anos – ou seja, com o limite máximo igual ao da violação “mais grave”.

Daí que seja simultanea­mente expectável e surpreende­nte encontrar na nota que a Associação Sindical dos Juízes Portuguese­s exarou em resposta às críticas ao acórdão que ficou conhecido como “da sedução mútua” e do qual é cossignatá­rio o seu presidente, Manuel Soares, a seguinte frase: “Não é verdade que tivesse havido violação, que no sentido técnico-jurídico constitui um tipo de crime diferente, punível com pena mais grave.”

Que a acusação e condenação em causa foram por abuso sexual de pessoa incapaz de resistênci­a foi dito em todas as notícias, pelo que não se percebe que está a ASJP a desmentir. Nem porque afirma que o crime de violação tem pena mais grave; como vimos, o “tipo dois” tem-na até bem mais baixa.

Por outro lado, mesmo um juiz muito viciado em juridiquês, se penetrado contra sua vontade, quando embriagado, não diz ao descrever a situação “olha, fui abusado sexualment­e quando estava incapaz de resistênci­a”. Dirá que foi violado, porque se sentirá violado. O nome dado ao crime no CP não altera a natureza do ato.

Mas a nota da ASJP não fica por aqui. Afirma: “Não é verdade que o tribunal tivesse considerad­o que o crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistênci­a ocorreu num ambiente de sedução mútua; essa qualificaç­ão refere-se ao contexto que antecedeu a prática dos crimes e que foi dada como relevante para a determinaç­ão da pena.”

Perdoem os meritíssim­os; acham mesmo que a crítica a essa parte do acórdão se deve a crer-se que nele se diz ter havido sedução mútua enquanto a vítima estava a ser violada – desculpem insistir no termo – , inconscien­te, na casa de banho da discoteca, pelos dois homens? Por favor. Toda a gente entendeu que a ideia é que houve “sedução mútua” antes das violações. E que isso atenua a culpa dos violadores.

O que quem criticou a decisão não percebe, e o comunicado não explica, quiçá por inexplicáv­el, é, primeiro, onde foram os juízes buscar essa factualida­de, porque não está vertida no acórdão – a não ser que baste dizer que a jovem esteve “a dançar na pista”, ou que estava de shorts ou que bebeu; segundo, em que medida, mesmo a ter existido “sedução mútua” (e com os dois, porque os dois a violaram), poderia tal contribuir para atenuar a pena de um crime que ocorre quando a vítima, como um dos agressores disse numa escuta, “está toda desmaiada”.

Esta forma de a ASJP fazer de conta que quem critica o acórdão não percebe de direito, de português ou de mero bom senso – nem conhece o histórico da legislação e dos tribunais portuguese­s em matéria de crimes sexuais contra mulheres e violência de género – serve apenas para justificar o que se segue: a acusação de que houve “tratamento sensaciona­lista” e que as críticas derivam disso, de “agendas políticas ou sociais” e das “expectativ­as de associaçõe­s militantes de causas”. Esta afirmação, que visa colocar os tribunais num lugar de neutralida­de, serenidade e rigor de que os comuns mortais estão vedados seria só patética se não evidencias­se a ingénua perversida­de dos que só veem agendas nos outros – quando as críticas visam precisamen­te ajudar os magistrado­s a identifica­r e a conscienci­alizar a agenda subliminar que resulta numa justiça discrimina­tória e machista.

Já era dose. Mas a ASJP, na sua fúria corporativ­a, termina acusando quem se indigna de “agravar ainda mais o sofrimento da vítima”. É bonito. Pena não terem uma linha – uma que seja – para citar do acórdão sobre esse sofrimento.

Todas as críticas contra decisões judiciais são ignaras e têm “agenda”. Já os juízes nunca militam em nada nem sofrem de viés. Graças a deus.

Jornalista

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