Carpe Diem
Da entrevista focando todos os temas jornalisticamente relevantes a Cristina Ferreira, do intrincado enredo da nova telenovela da SIC e da subversão do Clube dos Poetas Mortos.
No épico anglo-saxão Beowulf conta-se que a Grande Rainha Modthryth, sempre que apanhava um súbdito temerário a olhá-la directamente, mandava de imediato amarrá-lo, torturá-lo e esquartejá-lo. No caso da Rainha da Televisão Generalista (©) estas restrições bárbaras não se aplicam: os súbditos não só podem olhá-la directamente como muitas vezes não têm outro remédio. Podem olhá-la directamente no quiosque, podem olhá-la directamente no blogue, podem olhá-la directamente no Instagram, e podem olhá-la directamente no ecrã – de manhã, ao fim da tarde, e até ao sétimo minuto do Jornal da Noite (SIC) de segunda-feira, altura em que Rodrigo Guedes de Carvalho interrompeu pacientemente o alinhamento (”já vamos continuar a perceber como correu o início deste ano lectivo, mas para já...”) e anunciou que “a grande contratação do ano” acabara de chegar ao Palácio de Carnaxide, onde vai reinar durante os próximos anos. Anunciou também que a figura contratada pela SIC “por valores nunca dantes navegados” (sic) ia ser submetida a uma “entrevista longa, em que responderá a todas as perguntas que forem jornalisticamente relevantes”.
Uma peça introdutória apenas moderadamente hagiográfica explicou a sua ascensão, desde as origens humildes numa mítica terra encantada chamada “Malveira” até ao posto actual enquanto “Uma das Mulheres Mais Influentes do País” (©). A conversa fluiu a bom ritmo durante 37 minutos, permitindo que a entrevistada esclarecesse assuntos tão jornalisticamente relevantes como aquilo que a levou a “aceitar este projecto”, aquilo que a motivou a “superar este desafio” e o modo como tenciona “pensar a televisão”, mas o grande momento de revelação surgiu quase no fim. Após um quase-solilóquio da entrevistada, Rodrigo Guedes de Carvalho fez um silêncio de vários segundos e disse: “Olha... não sei que te diga mais... Estava aqui a ouvir-te e... estava a ver televisão.” E foi assim, neste contexto improvável, que ficou resolvido o antigo debate teológico sobre transubstanciação: no acto de reprodução mediática, a substância da pessoa da televisão transforma-se na substância da televisão, o que significa que a pessoa da televisão é simultaneamente uma pessoa e uma pessoa da televisão na televisão, mesmo na presença de outra pessoa na televisão. Elucidada esta matéria doutrinária, e evitado in extremis um potencial cisma, o entrevistador despediu-se com um “Bem-vinda à família”.
São temas complexos, mas nada que se compare a Alma e Coração, a novela de horário nobre que se estreou logo a seguir, e em que os atarefados primeiros episódios estabelecem uma rede de conexões causais e casuais tão intrincada como um enredo vitoriano. Há tráfico de seres humanos, há uma gravidez secreta, há um bebé abandonado à porta de uma igreja, há um acidente de automóvel, há uma tentativa de assassinato, há um transplante de coração, há um ritual pagão ecuménico com velas, tambores, cartas de Tarot e uma torrente de intrigantes non sequiturs: “Naquele dia será derramado sangue”, “Mas a vida eterna pode ser deste mundo”, “O coração é que pensa, não a cabeça”. A interligação é tão vertiginosa que a dada altura percebemos que a filha adoptada da receptora do coração transplantado namora com o filho adoptado do namorado da mãe, que é colaborador do avô do futuro namorado da neta do dador de coração. É uma pena que não se chamem todos Aureliano Buendía.
A intriga começa no Mediterrâneo em 1998, onde uma noiva apaixonada acorda de manhã para encontrar o seu futuro marido a contar maços de notas à mesa do pequeno-almoço na companhia de um mafioso italiano e do seu pneumático capanga. Imediatamente estabelecida como uma mulher perspicaz, conclui que algo de ilegal deve estar a acontecer e ameaça contar tudo à polícia. Pouco tempo depois é espancada e atirada de uma falésia, mas sobrevive, muda de nome e de penteado, regressa a Portugal e percorre o país numa anónima odisseia que a leva a apanhar fruta, plantar arroz e pedir boleia em itinerários complementares. Por fim chega ao circo, onde um palhaço vai assando os restos de um animal morto num grelhador. “Por acaso não precisam de alguém para trabalhar?” Após uma curiosa entrevista de emprego que consiste em ficar muito quieta enquanto arremessam facas na sua direcção, o dono do circo repete as palavras que devem ser uma espécie de lema não oficial da estação: “Bem-vinda à família.”
Otelespectador melindrado pela reportagem interrompida sobre o início do ano lectivo podia consolar as suas mágoas no AXN Black, que fez o favor de retransmitir O Clube dos Poetas Mortos, uma fascinante meditação cinematográfica sobre o eclodir da mentalidade fascista e a corrupção da juventude através de práticas pouco rigorosas na contratação de professores. Robin Williams interpreta o papel de Keating, uma figura sinistra, análoga aos charlatães demoníacos que povoam as ficções de Mark Twain e Gogol, materializando-se periodicamente em lugares conturbados para corromperem Hadleyburg ou recolherem almas mortas. O filme vai mostrando de forma subtil mas conclusiva que Keating é um dos piores professores de todos os tempos, cujos perversos métodos pedagógicos consistem em repetir versos descontextualizados, em obrigar os alunos a danificar propriedade escolar (rasgando capítulos inteiros de livros) e em encorajá-los a dúbias actividades extracurriculares, como reunirem-se à noite numa gruta fria e húmida, sujeitos a contrair pneumonia. O espírito tutelar deste processo decadente é Thoreau, cujo receio famoso os jovens desencaminhados lêem em voz alta no início das suas reuniões: “Quando vier a morrer, descobrir que nunca vivi.” Não foi o destino de Thoreau, que viveu uma vida repleta e triunfante, fugindo aos impostos, chulando o seu amigo rico, e brincando ao campismo selvagem no meio do bosque enquanto a mãe lhe lavava a roupa em casa, antes de morrer de tuberculose aos 44 anos.
“Carpe Diem!”, exorta o descompensado Keating, um narcisista megalomaníaco incapaz de prever as consequências dos seus actos, promovendo o entusiasmo sem reflexão e um narcisismo colectivo cujo derradeiro propósito é elevá-lo a figura idolatrada. O resultado é o esperado: um estudante é expulso, outro suicida-se, famílias são destruídas, vidas são arruinadas. Na célebre cena final, em que um grupo de vítimas de lavagem cerebral sobe para cima das secretárias para jurar lealdade ao traste incompetente que acabou de ser despedido, só lhes falta estender o braço direito e gritar “Heil, Keating” em uníssono. Não é difícil especular sobre o destino de Keating depois dos créditos finais: com o currículo arruinado após este desastre no ensino privado, foi provavelmente destruir uma qualquer escola pública. Quanto aos estudantes sobreviventes, agora licenciados no culto da fútil auto-expressão, estão condenados ao rodízio de promessas estagnadas e intenções artísticas frustradas, até que um dia, enquanto recuperam de um ataque de sífilis em Viena, um carismático neonazi lhes abra as portas de um clube clandestino, dizendo “Bem-vindos à família”.
Cronista. Escreve de acordo com a antiga ortografia