A higiene do desenho
Há muitas caricaturas publicadas há alguns anos que seriam hoje recusadas. O escrutínio público aos cartoons e aos caricaturistas através das redes sociais pode “alimentar a intolerância”. André Carrilho, Nuno Saraiva e outros explicam como o sentem na p
Denzel Washington vem tendo caras diferentes. Ao longo dos anos, tem vindo a ser pedido ao ilustrador André Carrilho que faça a caricatura do ator norte-americano de forma cada vez menos exagerada, as orelhas mais pequenas, o nariz menos volumoso, os lábios menos carnudos. Uma caricatura da estrela de Hollywood aprovada e publicada em 2012 seria, provavelmente, reprovada nos dias que correm, sugere André Carrilho.
A última que fez, já neste ano, voltou para trás para que as chamadas características de raça fossem ainda mais suavizadas. Relativamente a retratados judeus, tem de ter cuidado para não desenhar narizes muito frondosos. O motivo por parte das publicações, principalmente as norte-americanas e as britânicas, prende-se com o receio de serem acusadas de ofensa às identidades, sejam elas de raça, género, religião ou orientação sexual.
Para o cartaz das Festas de Lisboa de 2014, Nuno Saraiva desenhou uma vendedora de manjericos vestida de calções muito curtos e decote protuberante; uma rapariga negra a dançar pelos ares e a usar um top demasiado curto, de onde se vê as curvas inferiores dos seios; e um homem latino, de bigode, camisa aberta, a cantar para um microfone que parece um falo. Hoje, não seria aprovado. No ano seguinte, fez também para as Festas de Lisboa uma ilustração, que circulou pelo metro e foi reproduzida em toalhetes de mesas de refeição, com uma mulher angolana, robusta, sensual, a abraçar pelo pescoço um homem português, de bigode, franzino. Foi alertado para o pendor racista e machista do desenho num debate sobre “discriminação invisível” durante o festival Gerador, no ano passado, por um elemento da Associação Mulheres sem Fronteiras.
Serena Williams e Serralves
“Quanto mais desenharmos a preta caucasiana, menos riscos corremos de sermos chamados de racistas”, conta Nuno Saraiva. “Há um perfil antirracista, monstruosamente racista, que é: a tendência, a necessidade de querer representar os africanos o mais próximo possível dos caucasianos.” André Carrilho acrescenta: “Na Europa e nos Estados Unidos, são muitas vezes as pessoas brancas a dizerem que estou a ser injusto no que desenho.” Ambos justificam estas atitudes por parte de empresas e instituições pelo receio tanto de processos judiciais como de escrutínio público, em que este ganha um carácter facilmente viral através das redes sociais.
“Está tudo dentro dos seus gabinetes, está tudo cheio de medo. Medo de ações judiciais, medo de perder votos”, refere Nuno Saraiva.
A recente caricatura de Serena Williams, em que a tenista norte-americana se encontra a espezinhar a raquete em campo, depois da discussão com o árbitro português por causa das penalidades a que foi sujeita na final do US Open, correu mundo e tornou-se uma discussão à escala global, nas redes sociais. Ao ponto de o autor, o australiano Mark Night, desativar a sua conta de Twitter perante a dimensão dos insultos.
“Na minha opinião, este cartoon não é racista, na forma como representa a Serena Williams”, argumenta Nuno Saraiva. “Ela é representada como uma mulher birrenta e feia. E eu vejo-a como uma mulher birrenta e feia. Não a vejo como uma mulher elegante, nem física nem intelectualmente”, continua. “Ela é uma desportista genial. Mas não é uma crítica sobre isso. A forma como o cartoonista a desenhou... eu iria desenhá-la assim. Como é que um cartoonista afro-americano irá desenhar o Trump? Irá desenhá-lo elegante, bonito, charmoso? Ele não é assim.” A caricatura é acusada de racismo duplo, ou, no mínimo, de duplicidade de critérios, pelo facto de ter acentuado os traços étnicos de Williams e ter representado a sua adversária, a
“Temos de lidar com os estereótipos por uma questão de economia de traços.” ANDRÉ CARRILHO
haitiana-japonesa Naomi Osaka, de forma caucasiana – magra, elegante e o louro do totó estendido a todo o cabelo.
Identidade e intolerância
“Hoje [o escrutínio] já não é tanto acerca da liberdade, mas acerca da identidade”, defende o escritor e editor com um percurso ligado à banda desenhada João Paulo Cotrim. “Há nas populações urbanas do mundo inteiro esta hipersensibilidade às chamadas causas fraturantes. A questão do feminismo, do racismo, da homossexualidade. E, depois, a questão da religião. A religião o que trouxe para isto, e contagiou todas as outras áreas, foi a questão da ofensa. Quando o direito à ofensa foi uma conquista civilizacional. Tens de poder ofender”, continua. “Agora, diz-se que ‘a minha identidade justifica que eu não seja ofendido, que eu possa ser exatamente o que quero’. As pessoas não percebem é que o humor é precisamente o oxigénio. No fundo, está-se a tentar acabar com o ambíguo, que é o que tem graça nestas coisas. As ruas estão completamente sujas, mas as cabeças das pessoas estão completamente limpas”, diz, apontando para o perigo de a censura ter invadido a cultura, espaço onde “não é suposto resolver-se problema algum”. “É sobretudo uma infantilização do leitor, do consumidor de cultura, de qualquer pessoa. ‘Aquele pobre não vai perceber que...’ Isto também estupidifica. Não dá a possibilidade às pessoas de fazerem as leituras que querem.”
A caricatura define-se pelo exagero das características físicas da pessoa ou objeto retratados. “Temos de lidar com os estereótipos por uma questão de economia de traços”, explica André Carrilho. Na caricatura que fez de Denzel Washington em 2012, a cara do ator é mais facilmente reconhecível do que na de 2015. Já a caricatura que fez em março para o suplemento de literatura do jornal suíço NZZ Am Sonntag acerca de um jornalista e escritor de banda desenhada, o afro-americano Ta-Nehisi Coates, refere que nos Estados Unidos nunca seria publicada.
“Não faz sentido. Isso é uma espécie de uma retroescavadora do racismo. ‘Retro’ porque está a recuar e ‘escavadora’ porque está a aumentar ainda mais o buraco das minorias. Quando ele devia era ser tapado”, diz Nuno Saraiva, que tem um trabalho comunitário de integração de minorias étnicas e está ligado à associação Renovar a Mouraria. “Nós devíamos caminhar cada vez mais para a lógica de que somos todos pessoas”, continua.
Há também a questão da memória afetiva, ligada ao passado histórico das minorias. Em 2014, o cartoonista Jerry Holbert, do jornal The Boston Herald, pediu desculpas por ter feito um desenho em que retratava o então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, a escovar os dentes com pasta de sabor a melancia, fruto ligado a um dos estereótipos durante a época da segregação racial norte-americana.
Depois da polémica e da ira causadas pelos cartoons de Maomé publicados em 2005 no jornal dinamarquês Jylland’s-Posten, e após um congresso nas Nações Unidas sob o tema “Desaprender a intolerância”, onde se refletia sobre a responsabilidade editorial dos caricaturistas, foi criada, com o apoio da ONU, a Cartooning for Peace. “A caricatura sempre provocou polémica. Está no seu ADN”, refere Laure Simões, diretora editorial desta associação internacional. “Mas o facto de existirem redes sociais, de os desenhos circularem de forma viral sem qualquer contexto, sem um terceiro nível de entendimento, alimenta a intolerância”, argumenta. “Nos anos 70 e 80, estávamos mais dispostos a rir-nos do que hoje. É que a caricatura também serve para relaxar as tensões.” E remata: “Há uma responsabilidade editorial por parte dos cartoonistas, sim, mas há também uma responsabilidade do leitor: a de escolher não ser ofendido.”