Diário de Notícias

Entrevista a Sousa Cintra

“Vivi momentos maus no Sporting mas não quero recordar.”

- ALEXANDRA TAVARES-TELES

Em quem votou nas últimas eleições?

[Risos] O voto é secreto.

De outra maneira: ficou contente com o resultado? Fiquei muito contente. O presidente é um homem bom, tranquilo, conhece bem o clube, o futebol, e está rodeado de gente muito boa e competente. Qual foi a principal satisfação pessoal que tirou dos três meses em que dirigiu a SAD do clube? A de ter conseguido resolver os problemas que encontrámo­s. Foram três meses de uma dedicação total ao Sporting. Chegava de manha cedo e era último a sair. Às dez, meia-noite, duas da manhã e mais. Cheguei a sair de lá às quatro da manhã. Não se passou um sábado e um domingo que tivesse faltado. Sozinho, tirando um ou noutro domingo em que apareceu o Torres Pereira. Temeu em algum momento não conseguir levar o trabalho a bom porto?

Não sou pessoa para ter medo.

Porque começou então por recusar o convite? Porque tinha mais que fazer. Tinha a minha vida toda. Por isso disse ao Marta Soares “nem pense nisso, arranje outras pessoas, o Torres Pereira, por exemplo”. Respondeu-me que já o tinha convidado, mas que ele recusara. Eu próprio tentei convencê-lo. Os ilustres do clube, por uma ou por outra razão, não assumiam. Mas alguém tinha de o fazer. O Sporting estava a pique. Havia que ter essa coragem. Disse agora o mesmo que em 1989: “Já que os ilustres não querem ir, vou eu.” Não houve um único dia em que me tivesse arrependid­o de ter aceitado.

O que lhe disse a família? Não me aconselhei com a família. Ou gostamos ou não gostamos do nosso clube. Tentei que outros assumissem, não consegui. A partir de certa altura, acabou. Sou assim, é o meu feitio. Se ninguém vai, vou eu.

Foi bem tratado nestes três meses? Muito bem tratado por todos os sócios e até por colegas seus. Não tive ninguém a fazer-me oposição.

Tentou trazer Jorge Jesus de volta? Tentei tudo para o conseguir e ele queria. Mas havia um contrato assinado, com uma cláusula penal. Não seria legal nem ético. Com uma certeza fiquei: Jesus quer vir para Portugal, vem para Portugal e um dos três grandes vai recebê-lo. Certeza absoluta. No próximo ano, o Jesus estará em Portugal. Porque retirou do contrato de rescisão de Jorge Jesus a cláusula de confidenci­alidade a que Bruno de Carvalho o obrigara? Porque ele me pediu. Era o que faltava, obrigar alguém a estar com a boca calada. Ditadura foi no tempo do Salazar. O que disse a Bruno Fernandes e a Bas Dost, que os convenceu a ficar na equipa? Falámos de muitas coisas. Compreendi-os, tinham preocupaçõ­es normais. Por isso, o que lhes garanti foi um clube com um novo presidente, a lutar pelo título, capaz de rentabiliz­ar e promover os jogadores e de lhes dar segurança, a eles e às suas famílias.

Reafirma que não lhes aumentou o salário?

Reafirmo. Os contratos estão lá e são públicos. O que lhe passou pela cabeça quando viu as imagens do ataque a Alcochete? Uma tristeza imensa. Não é preciso ser sportingui­sta para sentir tristeza. O que é isto??? Acredita em Bruno de Carvalho quando este garante não ter tido nenhum papel no ataque? Nunca falei mal de nenhum presidente e não gostaria de começar agora. Bruno de Carvalho faz parte do passado. Fez o que fez e pronto.

Mas acha que deve ser expulso de sócio? Deve. Tanto lhe pedi “demita-se e concorra de novo”. Ele, nada. Tanto lhe disse “não destrua o que fez de bom”. Ele, nada. Perante isto, achei que chegava. Nunca mais falámos. Há um parecer no sentido da expulsão com o qual concordo. Provocou demasiados prejuízos, ao Sporting e até ao futebol português. A auditoria forense vai revelar surpresas em relação à gestão de Bruno de Carvalho?

Vamos aguardar. O que houver, saber-se-á.

Qual era exatamente a situação financeira do clube? Uma situação muito complicada, com contas penhoradas, resultado de dívidas ao fisco e à Segurança Social. Logo aí tivemos um grande problema. Foi preciso reabilitar a credibilid­ade do Sporting em tempo recorde.

E surpresas boas? Foi muito bonito ver o regresso de muitos sócios. Entrou muito dinheiro. Todos quiseram pôr os pagamentos em dia porque entenderam que a comissão estava ali com seriedade. Foi muito bonito.

Qual foi o momento mais difícil? Tomámos decisões, umas mais difíceis e outras menos. É a vida. Mas nunca é fácil despedir pessoas. Quarenta e duas pessoas. Mandou despedir ou falou com elas? Nunca mando dizer. Eu trato das coisas. Ainda mais nestes casos. Falei com todos.

Recebeu ameaças? Algumas coisas, mas estou-me nas tintas. Tomei decisões que não agradaram a todos. É a vida. Não sou homem de ter medo.

Precaveu-se? Nunca usei guarda-costas. Apesar de sair dali [Alvalade] tardíssimo nunca tive essa preocupaçã­o. Mas não quero recordar coisas más.

“Coisa má” foi também a negociação com Rafael Leão. O Rafael é sportingui­sta, um bom jogador criado nas escolas do Sporting, mas falta-lhe personalid­ade. Foi levado pelo empresário, um indivíduo sem escrúpulos.

“Coisas boas”. Qual foi o melhor elogio que recebeu? “Obrigado”. É uma constante em todo o lado. Sabe, os sócios sportingui­stas são diferentes.

Esperava esse reconhecim­ento? Estava à espera de conseguir ajudar o Sporting e para isso foi preciso determinaç­ão e coragem. Se andasse a aconselhar-me com este e com aquele, nada se tinha resolvido. Foi criticado por ter assistido ao Benfica-Sporting na bancada presidenci­al do Benfica. Se o jogo tivesse acontecido depois da acusação do processo e-Toupeira faria o mesmo? Faria exatamente o mesmo. Deixe-me dizer isto: nos anos em que fui presidente do Sporting nunca deixei de ir à Luz nem os dirigentes do Benfica a Alvalade. Mesmo com aquelas guerras todas, depois do verão quente de 1993. João Santos, Jorge de Brito, Manuel

“Bruno de Carvalho deve ser expulso de sócio. Provocou demasiados prejuízos ao Sporting e ao futebol português.”

Damásio, sempre tive uma ótima relação com todos os presidente­s. Como tenho com Luís FilipeViei­ra. Não era agora que ia mudar. E, repare, nunca fui um presidente meigo.

Surpreende­u-o a acusação do MP ao Benfica? Não muito, tendo em conta o que fui lendo na comunicaçã­o social.

Foi pressionad­o para avançar com uma candidatur­a? Muitos me pediram mas não podia aceitar. Sempre disse que passados aqueles três meses não aceitaria nenhuma função executiva ou de gestão.

Nem por um momento lhe apeteceu voltar? Nunca me passou pela cabeça nem sequer tive vontade. Aquela função preenche o tempo todo. Foram quase três meses sem saber o que é um dia de praia, um dia de caça. Por amor de Deus. Não.

Ainda se lembra em que dia foi eleito presidente?

Não. 23 de junho de 1989. O Sporting passava então por uma crise ainda mais grave. Financeira­mente, sim. Nessa altura, não se pagava a jogadores e pessoal há sete meses. Derrotou três candidatos, entre eles Jorge Gonçalves, a quem sucedeu. Que recorda desse tempo? Que nunca pensei ser presidente do Sporting. O candidato pensado por João Rocha era Santana Lopes e o outro o Carlos Monjardino. Mas houve tanta baralhada, tanto vai-não-vai, que às tantas disse “acabou, vou eu”. Olhe, foi como agora.

Nasceu em 1944, tinha, portanto, 45 anos.

Era um miúdo.

Quem era esse miúdo? O mesmo rapaz de hoje. Muita vontade de fazer bem, de ajudar. Muito trabalhado­r e admirador de mulheres. Era e sou. Sempre digo e repetirei: as mulheres mais bonitas são do Sporting. Com exceções, claro. Protagoniz­ou o último grande conflito institucio­nal com o Benfica quando, em 1993, “roubou” Paulo Sousa e Pacheco. Essa história começa em 1989, no verão, acabara de ser eleito. Alguém me dá a notícia de que o Benfica, aproveitan­do os salários em atraso no Sporting, tinha convencido o Figo a assinar. Fiquei louco, mas louco mesmo. Pedi imediatame­nte que me fossem buscar o miúdo ao Algarve e que mo trouxessem, nem que fosse em calções. Chegado o rapaz perguntei-lhe “olha lá, és sportingui­sta ou benfiquist­a? É que se és sportingui­sta, como foste capaz de assinar pelo Benfica? Tu ficas aqui e assinas já novo contrato.” E assim foi. O que quer dizer que estas coisas vinham de trás. O primeiro a prejudicar-nos foi o Benfica. E eu retaliei.

Teve pena de não ter conseguido levar o João Pinto? E levava. Fiz as coisas bem feitas. O meu piloto levou o João Pinto ao sul de Espanha, instalou-o num hotel com nome falso. Estava bem coberto. Não fosse o Valentim Loureiro lixar tudo para receber o dele, o João Pinto também iria para o Sporting.

Então? O major tinha vendido o João Pinto ao Benfica e o Benfica ainda lhe devia uma tranche. Quando se suspeitou de que o João Pinto ia para o Sporting, Jorge de Brito avisou o major: “Se ele for não lhe pago.” Acontece que o João Pinto tinha os filhos na sogra e, portanto, falavam de vez em quando. Foi através da senhora que o major soube do paradeiro do João. Não obstante ser sportingui­sta, o major foi o traidor.

Desses tempos, do que se arrepende? Do despedimen­to de Bobby Robson. É o meu maior desgosto e o maior erro a minha vida. Um grande treinador e uma pessoa fantástica. Despediu-o no avião, depois de uma derrota com o Salzburgo. Porquê no avião? Não o despedi no avião. Despedi-o depois e explico a razão: Carlos Queiroz estava para ir para o FC Porto, estava tudo combinado. Ora o Sporting tinha oito campeões do mundo de juniores. É natural que tivesse pensado que se havia treinador que po- dia tirar partido daqueles miúdos era o Queiroz. Foi um erro que assumo. Despedi o Robson, que foi um senhor. Mas eu também cumpri. Fiz as contas como deviam ser feitas.

O que lembra do Mourinho? Lembro-me como se fosse hoje: pedi ao Manel [Manuel Fernandes] que me arranjasse quem falasse inglês, por causa do Robson. O Manel chegou-me com um rapaz, filho de um ex-jogador do Belenenses, que apresentei ao Robson. Um dia depois, perguntei-lhe “mister, o rapaz serve?” Ele olhou para mim e fez com as mãos aquele gesto que quer dizer “mais ou menos”, “assim-assim”. “Veja lá, se não serve arranja-se outro.” Ele repetiu o gesto. Pensei: estou tramado. Mas o rapaz lá acabaria por ficar [risos]. E em boa hora. O Mourinho é uma pessoa inteligent­e, muito inteligent­e, que aprendeu com Robson e mais, ultrapasso­u o professor.

Quanto ficou a pagar-lhe?

Uma ninharia, menos do que ele ganha hoje por dia. Agaffe mais conhecida: partiu o vidro do carro com uma garrafa de Água das Pedras. Ia a conduzir o carro quando me ligam da TSF. Encostei o carro a uns arbustos e atirei a garrafa com força, de maneira a que não resvalasse para a estrada. Atirei com tal força que parti o vidro. Nunca imaginei que o jornalista estivesse a gravar e digo: na altura não gostei da brincadeir­a. Ou quando mandou pintar um novo leão no autocarro do Sporting porque não gostou do primeiro. Fiz muito bem. Aparecem-me com um gato moribundo quando eu queria um leão com futuro. Ou quando anunciou o jogador Careca como sendo ‘metade Pelé, metade Eusébio”, fardo anedótico que o rapaz carregou para o resto da vida. [Risos] Quando o comprei foi o que me disseram. Devia ter dado o desconto aos empresário­s, exageram sempre, mas eu não sou de desconfiar das pessoas. Disse o que me tinham dito. Aos 15 anos é ascensoris­ta no Hotel Tivoli, em Lisboa, aos 17 tem o primeiro carro, um “boca de sapo”, aos 20 começa a investir no ramo imobiliári­o, aos 29 compra o primeiro avião, aos 31 é presidente da AG da Associação Industrial Portuguesa, aos 40 compra a Vidago Melgaço, Pedras Salgadas [VMPS] e a Cipol, aos 52 vende a VMPS à Jerónimo Martins, aos 58 aposta forte nas três fábricas de bebidas: duas no Brasil e uma em Portugal. Nunca deixou o investimen­to imobiliári­o, quis investir no petróleo. Tudo verdade. Agora é a vez de gozar um pouco a vida. Já estou reformado. Procuro resolver alguns dossiês importante­s como é o caso dos petróleos (um negócio de que as pessoas não gostam) e tenho uma vida mais calma. Diz-se que vai lançar um produto “revolucion­ário” para emagrecime­nto.

A seu tempo. Aos 8 anos ganhava dinheiro a vender caracóis. O que o fazia correr? Cada pessoa tem a sua energia, o seu ADN. Uns com mais sonhos, outros com mais ambição. Eu gostei sempre de fazer negócios. Sou o único da família. Nasceu comigo. Sempre tive essa ambição.

O que recorda do tempo em que não tinha dinheiro? A vontade de trabalhar e a ambição. Mas eu sempre tive dinheiro porque trabalhei muito, desde pequenino. Eram tostões? Eram. Mas para mim tostões é dinheiro. Custam-me a ganhar.

Como é o seu dia? Levanto- me todos os dias às seis da manhã, fico a ver televisão e depois vou trabalhar.

Dorme pouco? Durante anos, dormi o que era possível, o que a vida me permitia. Por muito que gostasse ou precisasse, não podia. Mas tive sempre sorte: basta encostar-me que logo adormeço.

Tem caçado?

Neste ano nem um tiro.

O que espera da vida?

Saúde, que é o que mais peço a Deus.

Reza muito? Rezo, sim. Peço saúde e felicidade para mim e para a minha família.

A mulher, o filho de 49 anos, a neta de 2.

Só queria casar-me uma vez na vida. Casei-me três.

O que hoje lhe dá prazer? Não sou muito exigente. Ter saúde, estar com amigos, viver tranquilo, sou uma pessoa que vive tranquilam­ente.

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FILIPE AMORIM/GLOBAL IMAGENS

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