Em contagem decrescente
O brexit parece bloqueado após a reunião de Salzburgo. Líderes do processo endureceram posições e revelarem um tom mais próximo da rutura do que de um espírito negocial construtivo. A uma semana da convenção anual do partido conservador, será que esta dramatização serve os objetivos de Theresa May? E que fará a primeira-ministra até ao decisivo Conselho Europeu de novembro, caso ultrapasse esta guerrilha dentro do seu partido?
Adramatização do brexit está a servir os propósitos de Theresa May. A uma semana da convenção anual do partido conservador, a irredutibilidade das suas posições antes e durante o Conselho Europeu informal de Salzburgo, bem como as palavras empregues na declaração ao país que fez na sexta-feira, vão ao encontro da maioria dos conservadores presentes no conclave, sejam eles mais linha “dura” ou mais “Chequers”. Aos primeiros, cúmplices das mentiras e da caótica gestão que rodeou o referendo e o seu resultado, porque o tom duro do discurso de May colocou a UE como a única depositária da má vontade negocial e, por via disso, dos danos infligidos no futuro ao Reino Unido. Aos segundos, mais alinhados com o roteiro proposto pelo governo britânico em julho e que levou a várias demissões ministeriais (Boris Johnson, David Davis), por continuar a defender a sua validade, pertinência e exequibilidade, mostrando ser capaz de lutar por um acordo final e não por um vazio total.
Simplificadamente, é esta atmosfera que rodeia a convenção do partido, afinal de contas, onde todo o brexit sempre se jogou antes e depois do referendo de 2016.
Mais do que um bloqueio entre Londres e a UE, a negociação do brexit está sobretudo entrincheirada em casa: entre britânicos beligerantes e flexíveis, entre conservadores ambiciosos e equilibradores, entre tíbios e desesperados trabalhistas, entre interesses empresariais e identidades revoltadas, e entre o futuro político de Edimburgo, Belfast ou Dublin e o de Londres.
O que é que esta postura nos diz sobre as intenções da senhora May? No curto prazo, apenas uma coisa: garantir que sai da convenção do partido no cargo. Este é o objetivo principal, que aliás resume tudo o que se tem passado ao longo deste tenebroso processo de divórcio com a UE: tudo não tem passado de uma duríssima luta interna dentro dos conservadores pela ascensão ou preservação do poder. O grande problema está na palavra “tudo”, uma parada demasiado alta para a qualidade política dos egos à volta da mesa londrina. Na fase pré-referendo, a sua marcação deu-se por tática eleitoral que servisse a manutenção da maioria absoluta de Cameron. No rescaldo do referendo, com um governo em estado de choque sem saber o que fazer com a batata quente nas mãos. Depois, quando respiraram fundo, nunca se entenderam na metodologia,
nos propósitos essenciais, no roteiro estratégico e na clarificação da mensagem interna e externa.
Além disso, assistiu-se a uma luta por reserva de legitimidade na definição final do brexit entre Westminster e Downing Street, além da continuação da indefinição estratégica no Partido Trabalhista, que já vinha da campanha do referendo. Se estão recordados, todo este processo foi intercalado com uma eleição legislativa em que a maioria conservadora foi perdida e a posição de Theresa May fortemente abalada para conduzir com autoridade o resto das negociações. A partir daí a pressão aumentou e só recentemente, sobretudo a partir do final do primeiro trimestre de 2018, é que os 27 perceberam melhor até onde Downing Street estava disposta a ir. Por fim, a clarificação feita por May em Chequers voltou a abanar o partido conservador, levou a demissões no governo, abriu espaço a que figuras até então mais institucionalizadas passassem a incendiar ainda mais o caminho da primeira-ministra.
No meio disto, a “questão irlandesa” assumiu o protagonismo merecido, passando a constituir a fronteira entre o aceitável entre os 27 e a força do veto iminente por parte de Dublin. O facto de estar hoje em cima da mesa a sobrevivência do Acordo da Sexta-Feira Santa – a base de uma saudável convivência política entre as Irlandas e Londres – torna tudo ainda mais dramático, além de existencial. No fundo, com novos e mais sérios dados em cima da mesa, o Reino Unido não deixa de estar hoje onde já esteve em 2015-2016: numa egotrip entre políticos inábeis, birrentos e agarrados às suas mesquinhas ambições pessoais. Basta lembrar David Cameron, que depois de meter o país neste imbróglio, saiu da política para consultor dos milionários interesses chineses na City.
Se a dramatização servir a tática de May na convenção conservadora, evitando a sua substituição no governo por alguém da linha dura, então talvez o efeito Salzburgo não tenha sido em vão. Deste ângulo, Tusk, Juncker e Barnier acabaram por ajudar a senhora May, evitando a sua queda em favor de alguém indesejável. A questão é o que fará a primeira-ministra com essa legitimidade partidária reforçada. Usará a dramatização até ao Conselho Europeu de novembro para forjar um acordo satisfatório entre todos, arrefecendo o pânico? Ou permanecerá irredutível em relação aos termos do acesso desejado ao mercado único e sobre a questão da fronteira irlandesa, levando por 2019 dentro o nível de ansiedade, de forma a conseguir concessões da UE até à data-limite do brexit (29 março)? E, neste caso, encontrado um acordo in extremis, haverá ainda condições para aprovar o texto final na Câmara dos Comuns? Nada é claro nesta fase.
O que me parece importante dizer é que a entrada numa zona comercial e geopolítica cinzenta só prejudica, por longo prazo, o Reino Unido, que cairá imediatamente nas regras da OMC e não terá assegurado nenhuma rede de acordos comerciais capazes de compensar as perdas da saída do mercado único. Do lado dos 27, apesar de irem até ao limite aparentando uma coesão inabalável, a verdade é que sabemos ser essa, hoje mais do nunca, uma ilusão mascarada pelo pragmatismo negocial, e que há conjuntos de Estados membros com distintas perceções sobre o brexit. Portugal, por exemplo, não tem qualquer interesse num não acordo ou num hard brexit, razão pela qual deve fazer tudo o que estiver ao seu alcance para tornar, juntamente com os demais, o desenlace feliz. Será, a partir daí, o bilateralismo que mais ordenará e quem melhor antecipar essa qualidade relacional terá as condições mais vantajosas para conter os danos deste calvário iniciado em 2016. Nunca é tarde para acertar o passo, mesmo em acelerada contagem decrescente.
A entrada numa zona comercial e geopolítica cinzenta só prejudica o Reino Unido, que cairá logo nas regras da OMC e não terá assegurado uma rede de acordos comerciais capazes de compensar as perdas da saída do mercado único.