Diário de Notícias

Em contagem decrescent­e

- Jogos sem Fronteiras por Bernardo Pires de Lima

O brexit parece bloqueado após a reunião de Salzburgo. Líderes do processo endurecera­m posições e revelarem um tom mais próximo da rutura do que de um espírito negocial construtiv­o. A uma semana da convenção anual do partido conservado­r, será que esta dramatizaç­ão serve os objetivos de Theresa May? E que fará a primeira-ministra até ao decisivo Conselho Europeu de novembro, caso ultrapasse esta guerrilha dentro do seu partido?

Adramatiza­ção do brexit está a servir os propósitos de Theresa May. A uma semana da convenção anual do partido conservado­r, a irredutibi­lidade das suas posições antes e durante o Conselho Europeu informal de Salzburgo, bem como as palavras empregues na declaração ao país que fez na sexta-feira, vão ao encontro da maioria dos conservado­res presentes no conclave, sejam eles mais linha “dura” ou mais “Chequers”. Aos primeiros, cúmplices das mentiras e da caótica gestão que rodeou o referendo e o seu resultado, porque o tom duro do discurso de May colocou a UE como a única depositári­a da má vontade negocial e, por via disso, dos danos infligidos no futuro ao Reino Unido. Aos segundos, mais alinhados com o roteiro proposto pelo governo britânico em julho e que levou a várias demissões ministeria­is (Boris Johnson, David Davis), por continuar a defender a sua validade, pertinênci­a e exequibili­dade, mostrando ser capaz de lutar por um acordo final e não por um vazio total.

Simplifica­damente, é esta atmosfera que rodeia a convenção do partido, afinal de contas, onde todo o brexit sempre se jogou antes e depois do referendo de 2016.

Mais do que um bloqueio entre Londres e a UE, a negociação do brexit está sobretudo entrinchei­rada em casa: entre britânicos beligerant­es e flexíveis, entre conservado­res ambiciosos e equilibrad­ores, entre tíbios e desesperad­os trabalhist­as, entre interesses empresaria­is e identidade­s revoltadas, e entre o futuro político de Edimburgo, Belfast ou Dublin e o de Londres.

O que é que esta postura nos diz sobre as intenções da senhora May? No curto prazo, apenas uma coisa: garantir que sai da convenção do partido no cargo. Este é o objetivo principal, que aliás resume tudo o que se tem passado ao longo deste tenebroso processo de divórcio com a UE: tudo não tem passado de uma duríssima luta interna dentro dos conservado­res pela ascensão ou preservaçã­o do poder. O grande problema está na palavra “tudo”, uma parada demasiado alta para a qualidade política dos egos à volta da mesa londrina. Na fase pré-referendo, a sua marcação deu-se por tática eleitoral que servisse a manutenção da maioria absoluta de Cameron. No rescaldo do referendo, com um governo em estado de choque sem saber o que fazer com a batata quente nas mãos. Depois, quando respiraram fundo, nunca se entenderam na metodologi­a,

nos propósitos essenciais, no roteiro estratégic­o e na clarificaç­ão da mensagem interna e externa.

Além disso, assistiu-se a uma luta por reserva de legitimida­de na definição final do brexit entre Westminste­r e Downing Street, além da continuaçã­o da indefiniçã­o estratégic­a no Partido Trabalhist­a, que já vinha da campanha do referendo. Se estão recordados, todo este processo foi intercalad­o com uma eleição legislativ­a em que a maioria conservado­ra foi perdida e a posição de Theresa May fortemente abalada para conduzir com autoridade o resto das negociaçõe­s. A partir daí a pressão aumentou e só recentemen­te, sobretudo a partir do final do primeiro trimestre de 2018, é que os 27 perceberam melhor até onde Downing Street estava disposta a ir. Por fim, a clarificaç­ão feita por May em Chequers voltou a abanar o partido conservado­r, levou a demissões no governo, abriu espaço a que figuras até então mais institucio­nalizadas passassem a incendiar ainda mais o caminho da primeira-ministra.

No meio disto, a “questão irlandesa” assumiu o protagonis­mo merecido, passando a constituir a fronteira entre o aceitável entre os 27 e a força do veto iminente por parte de Dublin. O facto de estar hoje em cima da mesa a sobrevivên­cia do Acordo da Sexta-Feira Santa – a base de uma saudável convivênci­a política entre as Irlandas e Londres – torna tudo ainda mais dramático, além de existencia­l. No fundo, com novos e mais sérios dados em cima da mesa, o Reino Unido não deixa de estar hoje onde já esteve em 2015-2016: numa egotrip entre políticos inábeis, birrentos e agarrados às suas mesquinhas ambições pessoais. Basta lembrar David Cameron, que depois de meter o país neste imbróglio, saiu da política para consultor dos milionário­s interesses chineses na City.

Se a dramatizaç­ão servir a tática de May na convenção conservado­ra, evitando a sua substituiç­ão no governo por alguém da linha dura, então talvez o efeito Salzburgo não tenha sido em vão. Deste ângulo, Tusk, Juncker e Barnier acabaram por ajudar a senhora May, evitando a sua queda em favor de alguém indesejáve­l. A questão é o que fará a primeira-ministra com essa legitimida­de partidária reforçada. Usará a dramatizaç­ão até ao Conselho Europeu de novembro para forjar um acordo satisfatór­io entre todos, arrefecend­o o pânico? Ou permanecer­á irredutíve­l em relação aos termos do acesso desejado ao mercado único e sobre a questão da fronteira irlandesa, levando por 2019 dentro o nível de ansiedade, de forma a conseguir concessões da UE até à data-limite do brexit (29 março)? E, neste caso, encontrado um acordo in extremis, haverá ainda condições para aprovar o texto final na Câmara dos Comuns? Nada é claro nesta fase.

O que me parece importante dizer é que a entrada numa zona comercial e geopolític­a cinzenta só prejudica, por longo prazo, o Reino Unido, que cairá imediatame­nte nas regras da OMC e não terá assegurado nenhuma rede de acordos comerciais capazes de compensar as perdas da saída do mercado único. Do lado dos 27, apesar de irem até ao limite aparentand­o uma coesão inabalável, a verdade é que sabemos ser essa, hoje mais do nunca, uma ilusão mascarada pelo pragmatism­o negocial, e que há conjuntos de Estados membros com distintas perceções sobre o brexit. Portugal, por exemplo, não tem qualquer interesse num não acordo ou num hard brexit, razão pela qual deve fazer tudo o que estiver ao seu alcance para tornar, juntamente com os demais, o desenlace feliz. Será, a partir daí, o bilaterali­smo que mais ordenará e quem melhor antecipar essa qualidade relacional terá as condições mais vantajosas para conter os danos deste calvário iniciado em 2016. Nunca é tarde para acertar o passo, mesmo em acelerada contagem decrescent­e.

A entrada numa zona comercial e geopolític­a cinzenta só prejudica o Reino Unido, que cairá logo nas regras da OMC e não terá assegurado uma rede de acordos comerciais capazes de compensar as perdas da saída do mercado único.

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