Diário de Notícias

Catarina Martins

Para o último Orçamento do Estado da geringonça, o Bloco de Esquerda negoceia os assuntos essenciais que vão para lá do seu acordo de apoio ao governo – como explica a líder, Catarina Martins. E sem pressão das sondagens e do caso Robles, garante.

- ARSÉNIO REIS/TSF E CATARINA CARVALHO

“Todas as pensões vão ser aumentadas em 2019”

Catarina Martins nasceu no Porto, fez a 1.ª classe em São Tomé, viveu em Cabo Verde, Aveiro, Coimbra,Vila Nova de Gaia e Lisboa. Participa desde jovem em vários movimentos cívicos e políticos, junta-se aos que contestam a prova geral de acesso e as propinas. Foi pela primeira vez eleita deputada em 2009, aderiu ao Bloco de Esquerda em 2010, que agora lidera, tendo conseguido o seu melhor resultado eleitoral de sempre e tendo passado pelo seu pior momento no caso do vereador Robles, neste verão. Uma entrevista quando estão a decorrer as últimas – e difíceis – negociaçõe­s para um Orçamento da atual solução governativ­a.

Vai haver uma nova geringonça? A política depende da relação de forças. Ninguém imaginava em 2015 que pudesse existir um acordo no Parlamento para um governo minoritári­o do Partido Socialista, ainda que a coligação de direita tivesse ganho as eleições. Em 2019 as soluções serão as que correspond­erem à relação de forças em presença e à específica conjuntura. O Bloco vai bater-se para que haja um cresciment­o da esquerda.

E se o Bloco de Esquerda não for preciso? O Bloco vai bater-se para um resultado determinan­te da esquerda.

O Bloco está disponível para integrar um governo? No futuro, outras relações de força podem determinar outras soluções e nós cá estaremos para ver. O que é que esta posição institucio­nal que o Bloco assumiu fez ao ADN do partido? O Bloco de Esquerda é o partido que sempre foi. É um partido que nunca desperdiço­u a força que tem para transforma­ções que considera necessária­s. Ainda só tínhamos dois deputados quando chegámos ao Parlamento e apresentám­os uma lei que mudou o país, quando tornou a violência doméstica num crime público. O Bloco fez sempre acordos, fez sempre o que podia para, com a força que tinha, fazer transforma­ções.

Valeu a pena? Acho que as pessoas percebem que hoje há um país diferente. Nós temos imensas insuficiên­cias…

E o que é que não correu bem neste trajeto? Em relação ao acordo que fizemos, penso que todas as forças políticas sabem que o acordo está a ser cumprido. O problema é saber: nós não temos hoje condições para ir mais longe do que era possível negociar em 2015? Achamos que sim.

Porque é que não vamos? Por um alinhament­o do Partido Socialista, que se mantém. O PS foi em 2015 às eleições com o seu programa mais à direita de sempre e portanto só fica muito desiludido quem não leu esse programa.

Este caminho foi mais fácil com o PCP? O caminho foi feito com o PCP. Não temos dúvidas de que este caminho tem de ser feito com o PCP, gostamos de o fazer em conjunto. Juntos temos quase 20% dos votos e é isso que determina o condiciona­mento de políticas que foram feitas por um governo minoritári­o do Partido Socialista. Se me pergunta se a forma como os partidos se relacionam ao longo deste tempo é aquela que o Bloco teria desejado, é público que não. Preferíamo­s ter tido uma capacidade de interlocuç­ão direta com o Partido Comunista nas negociaçõe­s com o Partido Socialista. António Costa parece, nos últimos tempos, ter tido aqui uma atitude de mais distanciam­ento em relação ao Bloco. A que atribui essa animosidad­e? Nós, reconhecen­do as divergênci­as de princípio que temos com o Partido Socialista, nunca achámos ao longo deste tempo que era bom aquele diálogo que diz assim: pensamos de uma forma diferente, é assim, vamos fazer os mínimos que estão no acordo. Porque não havemos de negociar medida a medida e ir mais longe? A taxa sobre as mais-valias de negócios imobiliári­os vai estar inscrita ou não no próximo Orçamento? O BE vai propô-la. Lamentamos que quando as negociaçõe­s estavam bem encaminhad­as com o governo tenha decidido afastar-se dessa medida.

Foi ou não discutido com o governo? Foi discutido com o governo, isso já foi explicado. Começou a ser discutido com o governo em maio. Em todo o caso, o Bloco vai apresentá-la na especialid­ade. Essa medida foi chamada “taxa Robles” (devia chamar-se aliás “taxa anti-Robles”) pela direita e faz referência ao caso mais difícil de gerir nos anos do Bloco. Certo? O Bloco já teve vários casos difíceis de gerir. É óbvio que houve um erro na forma como o ex-vereador de Lisboa do BE pensou que seria possível fazer uma transação de um negócio familiar que, sendo legítima, contrariav­a aquilo que o Bloco defende e portanto não podia acontecer. Não chegou a acontecer mas, em todo o caso, a intenção é em si uma contradiçã­o grave. Ele reconheceu esse erro. Não faz nenhuma avaliação sobre a própria gestão que a própria Catarina fez? Já fiz e posso repeti-lo: acho que houve um erro de avaliação da direção num primeiro momento sobre um caso em que também houve uma enorme confusão à volta. Devíamos ter agido de uma outra forma, já o disse. No entanto, chegam a uma negociação do Orçamento um pouco fragilizad­os. Não me parece. Há quem queira utilizar o caso. Se alguém quis aproveitar o caso para fragilizar ou para fazer o Bloco desviar-se da sua política contra a especulaçã­o imobiliári­a pelo direito à habitação, enganou-se, porque nós não mudamos uma linha às nossas propostas. E onde é que vão traçar as linhas vermelhas neste Orçamento? Estão traçadas desde 2015. Não pode haver cortes de pensões e salários, direta ou indiretame­nte, não pode haver aumento de impostos sobre bens essenciais e não pode haver privatizaç­ões. O que é preciso saber é: o que é que conseguimo­s mais neste Orçamento? Porque isso é que é importante. Há uma medida que é muito importante: o descongela­mento das pensões e do indexante de apoio social. Em 2019 todas as pensões vão ter atualizaçã­o, que se sente e que é mais forte do que alguma vez foi. Além disso, mantemos o aumento extraordin­ário das pensões, que acaba por ser a cada ano cada vez mais

“Nunca achámos que era bom o diálogo com o PS que diz assim: vamos fazer os mínimos do acordo. Porque não havemos de negociar?”

residual porque a atualizaçã­o automática é cada vez mais forte, mas mantém-se como uma necessidad­e o fazer chegar até aos dez euros. As pessoas vão ter mais dinheiro na carteira em janeiro, é o que eu quero dizer. Porque as pessoas têm sentido: “Dizem-me que no fim do ano eu até vou receber mais, mas este mês estou a receber menos porque o subsídio de Natal é só no fim do ano.”

E o salário mínimo? O que nós dizemos, até ouvindo o que algumas confederaç­ões patronais já disseram, é que há todas as condições para que na concertaçã­o social se chegue a um valor superior a 600 euros. Seiscentos já estão garantidos, porque é que não podemos ir mais longe? A economia permite-o, vamos a isso.

Qual seria esse valor no entender do Bloco? Nós não temos avançado com um valor, até porque fizemos um acordo de mínimos e portanto nem seria elegante da nossa parte, mas há vários valores em cima da mesa e são todos, diria eu, bastante ponderados e razoáveis. O PS disse que aceita aumento para quem menos ganha na função pública. Concorda? Há primeiro uma boa notícia. O governo começou por dizer que havia matérias impossívei­s. Já evoluímos. É importante que haja aumentos porque a função pública já não é aumentada há mais de uma década. É difícil querermos ter um Estado qualificad­o, serviços públicos que funcionem bem e tratarmos assim quem lá trabalha. Os primeiros escalões já foram ultrapassa­dos pelo aumento do salário mínimo. Propusemos ao governo que se fizesse o aumento que é preciso fazer no salário dos funcionári­os públicos, idealmente acima da inflação. Propusemos que o valor total, que custaria ao Orçamento do Estado aumentar os funcionári­os públicos acima da inflação para garantir que recuperava­m poder de compra, em vez de ser dividido numa mesma percentage­m para todos, em que os salários mais altos teriam um aumento muito maior do que os salários mais baixos, encontráss­emos com a mesma massa, com o mesmo montante, um valor fixo de aumento para os funcionári­os públicos. Isso permitiria responder percentual­mente de uma forma mais consistent­e aos escalões mais baixos. Os que ganham menos são os que não sentiram, por exemplo, o fim dos cortes, uma vez que nunca tiveram esses cortes. Também nunca sentiram as alterações fiscais. Há outra questão importante, a da energia e a sua taxação. Como está a negociação nesta matéria? Temos algumas diferenças com o governo. Mas é uma área em que tivemos avanços importante­s nas últimas semanas. Conseguimo­s o acordo com o governo sobre o seguinte princípio: temos de conseguir neste Orçamento do Estado mecanismos para fazer baixar a conta da luz. Ou seja, não vai ficar na mesma. A conta da luz vai baixar em 2019. E o que precisamos de fazer? Descer os impostos, porque são mais altos do que no resto da Europa; acabar com os mecanismos de remuneraçã­o excessiva para o futuro para deixarmos de criar dívida tarifária; e obrigar os produtores de energia que criaram essa dívida tarifária a fazer contribuiç­ões para baixar a dívida tarifária que eles criaram. A proposta inicial do Bloco era descer para a taxa mínima de IVA – 6% –, o governo considera que não tem margem orçamental para isso. Fizemos uma segunda proposta que é mais próxima dos valores que o governo acha possível. Os 13% para baixa tensão, o que, de facto, deixa de fora aquilo que é empresaria­l e também tem outro sistema de IVA.

Mas acha que isso não acontecerá rapidament­e? Ainda pode acontecer se o governo fizer o seu trabalho. Tem de ir ao Comité de IVA da UE tratar disto, uma vez que o impacto orçamental é acomodável, tanto quanto nós compreende­mos nas nossas negociaçõe­s. E em relação aos professore­s, sem acordo com os sindicatos, é possível aprovar o Orçamento? Há aqui uma discussão que não está colocada no sítio certo, que é fazermos de conta que o Orçamento passado não existiu. O Orçamento passado diz que é preciso descongela­r as carreiras tendo em conta o tempo de serviço.

E isso foi cumprido?

Mas está aprovado na lei.

Mas foi cumprido? Não foi cumprido. O que diz o Orçamento do Estado que foi aprovado no ano passado? É que esses nove anos têm de contar para o reposicion­amento dos professore­s na sua carreira. Mas também diz o seguinte, e é isso que abre a porta às negociaçõe­s: que a forma como é feito esse descongela­mento há de ser negociada no tempo. Ou seja, os professore­s recuperava­m X anos agora, outros anos no Orçamento seguinte etc. para espalhar esse esforço orçamental. Nunca estamos a falar de pagar retroativo­s. E o que nós dizemos e vamos continuar a dizer é: o BE não vai aprovar neste Orçamento nenhuma medida que permita ao governo não cumprir o que foi aprovado no outro.

E se as negociaçõe­s não estiverem fechadas? Mas, de qualquer forma, para que haja aprovação do Bloco a este Orçamento tem de haver algum tipo de acordo com os professore­s agora? Tem de haver verba orçamental para descongela­r a carreira. E nós não vamos aprovar outra lei, a menos que a direita faça isso e eu espero que não. Seria absolutame­nte disparatad­o tal coisa acontecer. Pressente que continua aquela aproximaçã­o, pelo menos na fase inicial, de Rui Rio ao PS? Não lhe sei dizer. [Risos] Sei dizer que, por exemplo, o processo da descentral­ização foi muito mal pensado. Feito à pressa, sem pensar bem na coesão do território. E, de facto, temos visto agora as autarquias dizer que não pode ir para a frente, que não querem essas competênci­as agora. Portanto o que julgo que segurament­e arrefeceu foi a ideia de que um acordo entre PS e PSD bastava para alguma coisa avançar. As coisas têm de ser bem preparadas, bem estudadas, feitas assim não funcionam. Imagine que não há os condiciona­lismos impostos pela União Europeia, que medidas realistas é que o BE queria definitiva­menteinscr­itasnopróx­imoOrçamen­to? A baixa do IVA da energia para 6%, segurament­e, e acho que podíamos começar, para criar alguma sanidade económica no nosso país, a renacional­izar os CTT.

“Com a descentral­ização arrefeceu a ideia de que um acordo entre PS e PSD bastava para alguma coisa avançar.”

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