Carta denunciou plano para encobrir assaltantes de Tancos
A denúncia levou à investigação sobre a descoberta do material que acabou com as detenções. A investigação ainda prossegue, com base nas pistas.
APJ não chegou por acaso ao processo da encenação da recuperação das armas que tinham sido levadas de Tancos. Recebeu uma denúncia muito pormenorizada que explicava como os militares da Polícia Judiciária Militar (PJM) e da GNR de Loulé arquitetaram com o suspeito do assalto a entrega. O objetivo, segundo a carta anónima, seria não apenas ficar com os louros e mostrar que se devia à PJM o sucesso da recuperação do material de guerra. Afastar a PJ civil do processo serviria também para encobrir os autores do roubo – e as cumplicidades dentro do Exército.
Segundo a argumentação do MP, a sede de serem eles a aparecer com os louros teria feito parte da motivação dos militares agora arguidos para cometerem os crimes de que estão indiciados – associação criminosa, prevaricação, denegação de justiça, abuso de poder e falsificação de documentos. Mas o encobrimento dos assaltantes, que podem ter contado com cumplicidades internas no quartel, eleva o caso para outro patamar.
O DN sabe que na carta que integra o processo a PJ viu confirmadas as suspeitas que já tinha sobre a anunciada “recuperação” do material. Desde o momento em que a PGR determinou, a 4 de julho de 2017 (seis dias depois do assalto), que queria a Unidade Nacional de Contra-Terrorismo (UNCT) da PJ a coadjuvar o MP na investigação, o diretor da PJM deu ordens para não ser dada nenhuma informação à PJ. Está também escrito que a PJM foi informada pela PJ em março de 2017 sobre uma denúncia a indicar que os paióis de Tancos podiam ser alvo de roubo – o que contraria a versão que tem circulado, segundo a qual o MP tinha escondido esta ameaça, e levan- ta a questão sobre se a PJM sabia porque não alertou então o Exército para que tomasse medidas de segurança?
A carta descreve ao pormenor o modus operandi dos militares da PJM e da GNR para, em acordo com o suspeito do assalto, simular a recuperação do material com um objetivo estratégico: mostrar que, como a PJM defendia, estava em causa um “crime estritamente militar”, de modo a não serem identificados os autores, apenas sendo punidos os graduados que estivessem de serviço aos paióis, responsáveis pela sua segurança. Foi o que acabou por acontecer – em cinco processos disciplinares instaurados pelo Exército o castigo mais grave foi para um sargento – 15 dias no quartel – responsável pelas rondas. Passar a perna “Ao contrário de outras investigações, a PJ não nos passou a perna. O senhor diretor pode dormir descansado.” Estas palavras estão, de acordo com fontes da investigação, num “memorando” escrito ao diretor da PJM, coronel Luís Vieira, com a data de dezembro de 2017, pelo major que regressará na próxima terça-feira da República Centro-Africana, para ser também ouvido em tribunal como suspeito. O oficial, que era o coordenador da investigação da PJM, será o nono arguido do inquérito, a juntar-se aos outros sete militares da GNR e da PJM – entre os quais Luís Vieira, que ficou em prisão preventiva, tal como o civil suspeito de ter planeado o assalto.
Até que ponto foram os ditos encobrimentos está por esclarecer. Segundo fontes que acompanharam os interrogatórios, ao tribunal os militares garantiram que tinha recebido ordens superiores, apontando, não só para o diretor da PJM, mas também para a estrutura hierárquica do Exército. Esse terá sido o motivo por que foram libertados – com termo de identidade e residência, suspensão de funções e proibição de se contactarem. Se, tal como sustenta o MP, o coronel Luís Vieira esteve a par de toda a “farsa” da recuperação do material, fê-lo por conta própria ou deu conhecimento à hierarquia do Exército cuja imagem estava abalada com os acontecimentos? São todas estas respostas que podem levar ao cabal esclarecimento do caso. Amizade e profissionalismo De acordo com fontes judiciais, no memorando assinado pelo major, no qual sugere que o diretor da PJM proponha ao comandante-geral da GNR um louvor para os militares de Loulé, é também salientada a importância da “amizade” e do “profissionalismo” dos envolvidos na dita recuperação “histórica” do material.
Na verdade, foi mesmo a “amizade”, de infância, entre o suspeito do roubo e um militar da GNR de Loulé a desencadear todo o plano da encenação do “achamento” do material. Daí a presença desta força tão mais a norte. Sustenta o MP que este contacto foi feito em agosto de 2017 – o roubo fora a 28 de junho – quando o traficante se apercebeu de que, devido à mediatização do caso, não conseguiria vender o material (apenas conseguiu as 1450 munições 9mm) que tinha guardado na propriedade da avó materna, a 35 quilómetros da base de Tancos. Este militar falou com o seu comandante de posto o qual, por sua vez, contactou outro “amigo” da PJM do Porto. A situação terá chegado depois ao conhecimento de Luís Vieira, que aprovou.
No extenso despacho que apresentou ao tribunal de instrução, o MP demonstra, através de uma exaustiva análise das comunicações e triangulações de localização dos telemóveis, bem como de algumas escutas, como os arguidos se juntaram com o sus-
peito do assalto, negociaram a entrega do material roubado e acertaram um pacto de silêncio para o não denunciarem. Estão registadas reuniões entre os militares da PJM e da GNR na própria sede da PJM, em Lisboa. E no Algarve.
Foram, de acordo ainda com os dados recolhidos pelo MP, os militares da GNR a ir buscar o material a casa da avó do suspeito do roubo e levá-lo para o terreno na Chamusca, onde seria “encontrado”. Há registos da presença de alguns destes arguidos naquela zona, dias antes: teriam ido fazer um reconhecimento do terreno. O major que está na RCA terá combinado com um sargento a chamada anónima, feita a partir de uma cabine telefónica no Montijo. Investigação comprometida O esclarecimento desta alegada “farsa” pode agora vir também a ajudar a descobrir o quem, quando, como e exatamente o que foi roubado dos paióis de Tancos. Embora, segundo fontes judiciais envolvidas na investigação, “a atitude da PJM comprometeu em grande medida o sucesso desse inquérito”. O MP sustenta que os militares da PJM contactaram, à revelia do MP e da PJ, alguns elementos que poderiam estar ligados ao roubo – de quem tinham tido conhecimento pela polémica denúncia anterior ao assalto, em março de 2017 –, causando estragos à investigação e à recolha de provas que era fundamentais.
Por outro lado, para o MP há vários sinais de que a PJM nunca terá pretendido que a investigação ao assalto tivesse sucesso. Um desses sinais foram os vários artigos publicados, logo a seguir ao furto, em diversos órgãos de comunicação social, revelando informações detalhadas sobre a investigação da PJ, nomes de suspeitos que poderiam estar a ser vigiados, cuja fuga o MP acredita que só poderia ter vindo da PJM.