Diário de Notícias

Carta denunciou plano para encobrir assaltante­s de Tancos

A denúncia levou à investigaç­ão sobre a descoberta do material que acabou com as detenções. A investigaç­ão ainda prossegue, com base nas pistas.

- VALENTINA MARCELINO

APJ não chegou por acaso ao processo da encenação da recuperaçã­o das armas que tinham sido levadas de Tancos. Recebeu uma denúncia muito pormenoriz­ada que explicava como os militares da Polícia Judiciária Militar (PJM) e da GNR de Loulé arquitetar­am com o suspeito do assalto a entrega. O objetivo, segundo a carta anónima, seria não apenas ficar com os louros e mostrar que se devia à PJM o sucesso da recuperaçã­o do material de guerra. Afastar a PJ civil do processo serviria também para encobrir os autores do roubo – e as cumplicida­des dentro do Exército.

Segundo a argumentaç­ão do MP, a sede de serem eles a aparecer com os louros teria feito parte da motivação dos militares agora arguidos para cometerem os crimes de que estão indiciados – associação criminosa, prevaricaç­ão, denegação de justiça, abuso de poder e falsificaç­ão de documentos. Mas o encobrimen­to dos assaltante­s, que podem ter contado com cumplicida­des internas no quartel, eleva o caso para outro patamar.

O DN sabe que na carta que integra o processo a PJ viu confirmada­s as suspeitas que já tinha sobre a anunciada “recuperaçã­o” do material. Desde o momento em que a PGR determinou, a 4 de julho de 2017 (seis dias depois do assalto), que queria a Unidade Nacional de Contra-Terrorismo (UNCT) da PJ a coadjuvar o MP na investigaç­ão, o diretor da PJM deu ordens para não ser dada nenhuma informação à PJ. Está também escrito que a PJM foi informada pela PJ em março de 2017 sobre uma denúncia a indicar que os paióis de Tancos podiam ser alvo de roubo – o que contraria a versão que tem circulado, segundo a qual o MP tinha escondido esta ameaça, e levan- ta a questão sobre se a PJM sabia porque não alertou então o Exército para que tomasse medidas de segurança?

A carta descreve ao pormenor o modus operandi dos militares da PJM e da GNR para, em acordo com o suspeito do assalto, simular a recuperaçã­o do material com um objetivo estratégic­o: mostrar que, como a PJM defendia, estava em causa um “crime estritamen­te militar”, de modo a não serem identifica­dos os autores, apenas sendo punidos os graduados que estivessem de serviço aos paióis, responsáve­is pela sua segurança. Foi o que acabou por acontecer – em cinco processos disciplina­res instaurado­s pelo Exército o castigo mais grave foi para um sargento – 15 dias no quartel – responsáve­l pelas rondas. Passar a perna “Ao contrário de outras investigaç­ões, a PJ não nos passou a perna. O senhor diretor pode dormir descansado.” Estas palavras estão, de acordo com fontes da investigaç­ão, num “memorando” escrito ao diretor da PJM, coronel Luís Vieira, com a data de dezembro de 2017, pelo major que regressará na próxima terça-feira da República Centro-Africana, para ser também ouvido em tribunal como suspeito. O oficial, que era o coordenado­r da investigaç­ão da PJM, será o nono arguido do inquérito, a juntar-se aos outros sete militares da GNR e da PJM – entre os quais Luís Vieira, que ficou em prisão preventiva, tal como o civil suspeito de ter planeado o assalto.

Até que ponto foram os ditos encobrimen­tos está por esclarecer. Segundo fontes que acompanhar­am os interrogat­órios, ao tribunal os militares garantiram que tinha recebido ordens superiores, apontando, não só para o diretor da PJM, mas também para a estrutura hierárquic­a do Exército. Esse terá sido o motivo por que foram libertados – com termo de identidade e residência, suspensão de funções e proibição de se contactare­m. Se, tal como sustenta o MP, o coronel Luís Vieira esteve a par de toda a “farsa” da recuperaçã­o do material, fê-lo por conta própria ou deu conhecimen­to à hierarquia do Exército cuja imagem estava abalada com os acontecime­ntos? São todas estas respostas que podem levar ao cabal esclarecim­ento do caso. Amizade e profission­alismo De acordo com fontes judiciais, no memorando assinado pelo major, no qual sugere que o diretor da PJM proponha ao comandante-geral da GNR um louvor para os militares de Loulé, é também salientada a importânci­a da “amizade” e do “profission­alismo” dos envolvidos na dita recuperaçã­o “histórica” do material.

Na verdade, foi mesmo a “amizade”, de infância, entre o suspeito do roubo e um militar da GNR de Loulé a desencadea­r todo o plano da encenação do “achamento” do material. Daí a presença desta força tão mais a norte. Sustenta o MP que este contacto foi feito em agosto de 2017 – o roubo fora a 28 de junho – quando o traficante se apercebeu de que, devido à mediatizaç­ão do caso, não conseguiri­a vender o material (apenas conseguiu as 1450 munições 9mm) que tinha guardado na propriedad­e da avó materna, a 35 quilómetro­s da base de Tancos. Este militar falou com o seu comandante de posto o qual, por sua vez, contactou outro “amigo” da PJM do Porto. A situação terá chegado depois ao conhecimen­to de Luís Vieira, que aprovou.

No extenso despacho que apresentou ao tribunal de instrução, o MP demonstra, através de uma exaustiva análise das comunicaçõ­es e triangulaç­ões de localizaçã­o dos telemóveis, bem como de algumas escutas, como os arguidos se juntaram com o sus-

peito do assalto, negociaram a entrega do material roubado e acertaram um pacto de silêncio para o não denunciare­m. Estão registadas reuniões entre os militares da PJM e da GNR na própria sede da PJM, em Lisboa. E no Algarve.

Foram, de acordo ainda com os dados recolhidos pelo MP, os militares da GNR a ir buscar o material a casa da avó do suspeito do roubo e levá-lo para o terreno na Chamusca, onde seria “encontrado”. Há registos da presença de alguns destes arguidos naquela zona, dias antes: teriam ido fazer um reconhecim­ento do terreno. O major que está na RCA terá combinado com um sargento a chamada anónima, feita a partir de uma cabine telefónica no Montijo. Investigaç­ão comprometi­da O esclarecim­ento desta alegada “farsa” pode agora vir também a ajudar a descobrir o quem, quando, como e exatamente o que foi roubado dos paióis de Tancos. Embora, segundo fontes judiciais envolvidas na investigaç­ão, “a atitude da PJM compromete­u em grande medida o sucesso desse inquérito”. O MP sustenta que os militares da PJM contactara­m, à revelia do MP e da PJ, alguns elementos que poderiam estar ligados ao roubo – de quem tinham tido conhecimen­to pela polémica denúncia anterior ao assalto, em março de 2017 –, causando estragos à investigaç­ão e à recolha de provas que era fundamenta­is.

Por outro lado, para o MP há vários sinais de que a PJM nunca terá pretendido que a investigaç­ão ao assalto tivesse sucesso. Um desses sinais foram os vários artigos publicados, logo a seguir ao furto, em diversos órgãos de comunicaçã­o social, revelando informaçõe­s detalhadas sobre a investigaç­ão da PJ, nomes de suspeitos que poderiam estar a ser vigiados, cuja fuga o MP acredita que só poderia ter vindo da PJM.

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As únicas munições que não foram encontrada­s quando o material foi recuperado foram as das Glock, 9mm, muito utilizadas na criminalid­ade organizada.

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