Os 40 anos do restaurante do poder e das artes
Em 1978, Viviane Durieu, Virginie Laffou e Pedro Martins tiveram uma ideia: abrir um bar com bom pão, bom queijo e bom vinho. Acabariam a fundar um dos restaurantes mais carismáticos de Lisboa, palco de alianças políticas, segredos, grandes negócios e coz
Amanhã a festa começa as 19.30. Nos claustros do Convento das Bernardas, ao som de uma banda de jazz, aguardam-se cerca de 750 convidados, meia Lisboa: políticos, colunistas, escritores, jornalistas, músicos, atores, figuras da rádio e da televisão, empresários variados, reunidos agora para celebrar os 40 anos (antecipados um mês por precaução meteorológica) de um restaurante carismático, palco de negócios, alianças, muitos segredos e cozinha reconhecida – A Travessa.
Na sala principal do restaurante, antigo refeitório do Convento das Bernardas do Mocambo, fundado em 1653 e dedicado a Nossa Senhora da Nazaré, Viviane escolhe uma de entre as centenas de fotografias espalhadas pela mesa.Viviane,Virginie e Pedro, ainda longe de ser o pai de MargaridaVila-Nova, posam sorridentes defronte de uma pequena porta. A fotografia inaugural, prova de que a história da casa começa muito antes, no número 27 da Travessa das Inglesinhas, Madragoa.
1978. Viviane tem 31 anos. Nascida em Tournai, é casada com um português, Francisco Avelar, e vive em Portugal desde 1969. Fotógrafa desempregada nos anos quentes da revolução, é dela a ideia original: abrir um bar onde se vendesse bom pão, bom queijo e bom vinho. “Bastava-nos isso”, recorda, “tanto mais que eu mal sabia cozinhar.” A ideia, porém, vai mais longe – a 4 de novembro daquele ano, os três amigos fundam A Travessa. Viviane faz “um paté, receita de um tio talhante, uns tabuleiros com tomate, beringela e curgetes recheadas e umas tartes de maçã”. É um sucesso.
Vizinha da Emissora Nacional (Rua do Quelhas), A Travessa rapidamente se torna poiso de jornalistas. E os jornalistas trazem políticos. Sobretudo à hora de almoço, longos, até às quatro da tarde. Viviane desfia fotografias: Helena Sanches Osório, Mário Bettencourt Resendes, Alfredo Barroso, Al-
meida Santos, Rui Vilar, Isabel Soares, as redações e o Parlamento da época representado em força, variação leve, solar, do bar Procópio, cenário criado em 1982 por Alice e Luís Pinto Coelho para conspirações urdidas pela noite. Segredos e confissões que os donos nunca revelarão. Mas, ainda assim, comenta: “Recordo-me que o PRD foi fundado n’A Travessa.” Cantina de Maria Filomena Mónica, de António Barreto, de Vasco Pulido Valente e António-Pedro Vasconcelos. “Não era fácil ao António e ao A-PV entrarem por aquela porta tão pequena. Tinham de se dobrar.” Ri.
Na cozinha manda – mandaria por mais de 25 anos – Maria. “Fazia um steak au poivre como ninguém.” A comida deliciosa A ementa vai-se sofisticando. Ao steak junta-se, por falta de endívias, a couve-flor gratinada, prato com pouca saída até Viviane o apresentar em francês. Perante a novidade chou-fleur au gratin “é um ver se te avias”.
Chegam os paupiettes de veau, “bife enrolado com carne temperada cozinhada com chalotas” acompanhado por batatas fritas.
Mesas pequenas, toalhas com quadriculado branco e vermelho, espaço exíguo. “Por vezes, quando as pessoas chegavam sozinhas, pedia-lhes que partilhassem a mesa. Foi assim que casei muita gente.” Desde logo os pais da atriz MargaridaVila-Nova.“A Margarida era muito engraçada, andava de mesa em mesa a roubar comida”, contaViviane.
O restaurante fecha ao fim de semana. “É uma prisão. A Travessa foi o meu terceiro filho.” Porém havia uma folga: “Às sextas-feiras encontrava-me com o Manuel Reis, o Fernando Fernandes e o Zé Miranda, jantava no Pap’Açorda (1981), seguíamos para o Frágil (1982), daqui para os 3 Pastorinhos, passávamos pelo Plateau e acabávamos no Alcântara-Mar.” Roteiro icónico de Lisboa, anos 1980.
E a fama trouxe a “malta boémia”. Músicos, atores, artistas e intelectuais. Em foto- grafia, passam pelas mãos de Viviane Miguel Esteves Cardoso, Pedro Rolo Duarte, Luís Represas, Rui Veloso, Pedro Ayres Magalhães, muitos artistas plásticos. As enchentes obrigam a obras e, em 1985, passa a acolher 40 pessoas.
Em 1994, já sem Virginie e Pedro, Viviane faz sociedade com António Moita, apresentado por um amigo comum. “Alguém que não fazia parte da vida boémia: não bebia nem fumava”, descreve a belga.
Nascido na Malveira em 1957, António é à época trabalhador portuário com formação em turismo. “Farto de ver navios”, dedica-se a tempo inteiro ao restaurante e traz novidade. A Travessa passa a incluir peixe na ementa e a abrir ao sábado com dois pratos únicos: pernil de pata negra e mexilhões. Uma ementa à medida do que havia: “Um fogão com quatro bicos, um forno, uma grelha e duas fritadeiras.” Mudar de casa Em 2003, são desafiados para se mudarem para o Convento das Bernardas. Viviane dá uma gargalhada: “Sempre disse que com esta vida acabaria num convento e cá estou.” Recorda a primeira vez que entrou na sala ampla, outrora refeitório do convento. “Achei isto muito frio, vazio, gelado. O contrário da sala da Travessa das Inglesinhas.” Como é que vamos aquecer isto?”, pensa e consegue resposta. Com o mobiliário antigo, de madeira, que foi buscar à família e a uma decisão genial: restaurar o forno de lenha e iniciar o fabrico de pão. Os clientes passam a ser recebidos pelo olor a pão quente, que podiam comprar e levar para casa.
Os medos de Viviane vão-se dissipando. O Euro 2004 dá novo alento ao negócio, agora com outras responsabilidades e custos. Deixa de abrir ao almoço e a ementa passa a incluir “pratos de cariz português, mas de apresentação internacional”.
O restaurante coleciona primeiros-ministros: Anónio Guterres, Durão Barroso e Pedro Santana Lopes – “este quase todas as noites quando era primeiro-ministro”, conta António Moita. José Sócrates foi visita regular, mas “não aparece há muito”. António Costa é cliente antigo, assíduo e muito querido da proprietária. O CDS não fica atrás – Paulo Portas nos tempos de governo, Assunção Cristas e Nuno Melo são frequentadores habituais. Miguel Portas aparecia muitas vezes. Francisco Louçã e Catarina Martins, de vez em quando. Carlos Brito, ex-dirigente do PCP, preferia a versão antiga, na Travessa das Inglesinhas. Marcelo Rebelo de Sousa raramente escolhe A Travessa (“apareceu uma ou duas vezes, não mais”). Cavaco Silva nunca por lá foi visto.
Mantém jornalistas, ganha muitos homens e mulheres de negócios, muitos turistas. Perde o lado boémio. Outros tempos.
“Pensava que teria A Travessa uns dois anos e aqui estou eu há 40”, lembra a belga “com muita coisa portuguesa”.
“Pensava que teria A Travessa uns dois anos e aqui estou eu há 40!”
VIVIANE DURIEU