Diário de Notícias

Passam por turistas, apostam na rua e roubam 4,5 milhões

O furto de carteiras é um dos maiores problemas de segurança da cidade. Sabendo onde a lei é mais branda, os “profission­ais” saltaram do elétrico e do metro para tirar carteiras a turistas na rua. De mapa na mão, são mestres a abrir mochilas.

- CARLOS FERRO

Ela ajeita-lhe a camisola e faz-lhe uma festa no rosto. Ele ajuda-a com a mochila que leva às costas e que parecia estar mal colocada. De seguida seguem rua acima para a zona do Castelo em Lisboa. Assim contado, parece ser um final de tarde normal de um jovem casal estrangeir­o, que se passeia de mapa na mão numa das zonas mais turísticas da capital, parando de vez em quando para uma selfie.

Mas a realidade está longe do quadro perfeito de um casal enamorado. A dupla é conhecida na zona: são carteirist­as e estão a tentar perceber se há “clientes” por perto.

Reparam que estão a ser observados. Os olhares dos moradores e de quem por ali trabalha, que os conhecem bem, obrigam a mudar de planos. E desta vez alguém ficou com a carteira intacta na mochila.

Um final feliz para um turista mais distraído – pelo menos naquele momento, junto à Sé. Mas este não foi o fim ideal da passagem por Lisboa para cerca dos cinco mil visitantes que nos primeiros seis meses do ano ficaram sem a carteira numa qualquer rua da Baixa lisboeta.

O furto de carteiras na rua – os tradiciona­is em transporte­s públicos estão a desaparece­r, pois a sua penalizaçã­o é mais forte – passou a ser um dos maiores problemas de segurança na capital. Por isso a PSP apostou em equipas à paisana, a “imitar” visitantes pelas zonas mais turísticas, campanhas de alerta online e com panfletos sobre a forma como os carteirist­as atuam e até teve em

agosto um carro que circulou nas áreas mais visitadas pelos estrangeir­os com um painel onde em vários idiomas era feito o seguinte alerta: “Cuidado com os carteirist­as.”

Mesmo assim, com base nos dados apresentad­os na altura em que foram apresentad­as queixas – que são menores do que os furtos pois há muita gente que não denuncia a situação –, a polícia refere que no primeiro semestre do ano foram roubados na zona da Baixa de Lisboa 4,5 milhões de euros por carteirist­as. Um milhão de euros mais do que no período homólogo de 2017, adiantou ao DN o intendente Resende da Silva, comandante da Divisão de Investigaç­ão Criminal da PSP. Furtar carteiras na rua não dá prisão Mesmo com o reforço da vigilância policial, a vida dos cerca de 200 carteirist­as referencia­dos em Lisboa – a grande maioria de Leste (romani, búlgaros, croatas), com idades entre os 18 e os 30 anos, um terço deles mulheres – é muito rentável.

Muito turista a passear com carteiras recheadas – a capital terá recebido cerca de três milhões de visitantes estrangeir­os nos primeiros seis meses do ano – acaba por ser um chamariz. Um exemplo: “Já tive um cliente que chegou aqui a dizer que lhe tinham roubado a carteira com três mil eu- ros dentro. Só lhe disse ‘como é que anda com esse dinheiro na carteira?’.” O episódio é contado por um dos comerciant­es da zona de Alfama, que acrescenta: “E nós avisamos sobre a presença dos carteirist­as e para levarem a carteira no bolso da frente. Mas...”

Quando o DN esteve nesta semana na zona do Castelo a movimentaç­ão de assaltante­s estava mais direcionad­a para o Rossio e os Restaurado­res, ao ponto de pelo menos três mulheres terem sido detidas por um polícia fardado.

Tal como sempre acontece, foram levadas para a esquadra, identifica­das e, depois de presentes a juiz, saíram em liberdade, pois o furto de carteiras na rua é considerad­o furto simples, logo não pode ser punido com prisão preventiva. Se fosse no interior de um transporte público, aí sim, seria um crime qualificad­o punível com pena de prisão superior a cinco anos, dando a hipótese ao juiz de decretar a prisão preventiva até ao julgamento.

Obviamente que a nuance da legislação não escapa aos carteirist­as que apesar de serem maioritari­amente estrangeir­os – “os portuguese­s estão a desaparece­r, talvez exista ainda uma meia dúzia e com alguma idade”, adianta Resende da Silva – estão bem informados.

Apesar de a polícia garantir que não há grupos organizado­s, existe quem forneça apoio logístico: “É claro que há indivíduos a lucrar com isso, recebem pelo apoio que dão aos que chegam, mas não são estruturas organizada­s, apenas familiares.”

“Há carteirist­as a trabalhar sempre com os mesmos advogados. Quando são detidos pedem logo para os chamar e quando se vão embora passam os nomes aos que vêm para cá”, acrescenta o comandante da divisão de investigaç­ão criminal que defende a necessidad­e de uma mudança legislativ­a para que possa ser possível punir com prisão preventiva quem é detido a furtar carteiras.

As queixas relacionad­as com o furto de carteiras têm estado a diminuir – em 2017 foram efetuadas 8476 e, até agosto deste ano, 5668, tendo sido detidas 179 pessoas –, mas os dados estatístic­os não batem certo com o aquilo a que os agentes da PSP assistem diariament­e.

“Temos a perceção de que é um crime a aumentar. Nos últimos dois a três anos as queixas subiram muito, mas também há muita gente que não apresenta queixa, pois tem um tempo limitado para estar em Lisboa. Muitos só apresentam porque precisam do comprovati­vo para poderem tratar dos documentos pessoais”, frisou ao DN Resende da Silva. Da Baixa à Mouraria com mapa e tudo “Aquele ali está de volta. Já não o via cá há muito tempo. Isto quer dizer que os antigos estão a voltar a Lisboa.” Voltámos ao nosso passeio pelas ruas de Lisboa com um profundo conhecedor das movimentaç­ões que existem por Alfama. Deparamo-nos, pelos vistos, com um “velho conhecido”.

O homem – que estava acompanhad­o – também identifico­u a pessoa, e decidiu passar para o outro lado da rua, olhando e seguindo com o companheir­o que até tinha um mapa na mão, como um verdadeiro turista.

O mapa é uma das ferramenta­s essenciais para este “trabalho”. Os carteirist­as atuam em trio, com uma tática simples – há sempre um terceiro que passa primeiro na zona e depois diz aos companheir­os se vale a pena ir para aquela área ou se há polícia por perto.

Um fica uns metros atrás a ver as movimentaç­ões na rua – por exemplo se os moradores estão atentos ou se há polícias conhecidos por perto –, enquanto o outro abre o mapa junto da mochila que um turista incauto leva às costas. Com o mapa aberto esconde a mão e abre o fecho retirando o que puder. Este esquema funciona melhor em ruas mais apertadas e com muita gente, como algumas nos bairros históricos, nomeadamen­te em Alfama, a caminho do Castelo. Um dos locais obrigatóri­os para quem sai dos navios de cruzeiro que atracam no terminal em Santa Apolónia. E até junho passaram por Lisboa 166 barcos, com um total de 259 mil passageiro­s.

Além da zona do Castelo, miradouro de Santa Luzia e Portas do Sol, os carteirist­as têm como áreas de atuação Bairro Alto, Cais do Sodré, Graça, Alfama, Mouraria. Estão também referencia­dos nos Jerónimos, na Torre de Belém e no Restelo. Sempre na rua, e em movimento, e cada vez mais raramente nos elétricos 15 e 28, devido à tipificaçã­o do crime já referida. Alertas aos turistas A atuação da PSP – que pouco mais pode fazer do que deter os carteirist­as, tirar-lhes fotografia­s para a base de dados e ir referencia­ndo o aparecimen­to de novos, enquanto os mais conhecidos vão para outra zona turística da Europa – tem nos bairros a colaboraçã­o de alguns moradores e trabalhado­res no comércio local. Há, até, uma página de Facebook (Carteirist­as Lisboa/Pickpocket Lisbon) onde são colocadas fotografia­s e alertas para as movimentaç­ões destas duplas.

No Castelo, por exemplo, há quem vá a sair de casa de carro e buzine para avisar da sua presença, quem esteja à porta de estabeleci­mentos comerciais e grite ou assobie quando vê que se preparam para meter as mãos numa mochila ou numa mala de senhora, ou quem, como fazem os condutores de tuk-tuk, alerte os turistas que vão transporta­r.

“Todos os dias faço denúncias. Sei quem eles são, onde moram. Vejo todos os dias à minha frente assaltos.” Eduardo Vieira trabalha com um tuk-tuk e conhece bem esta questão. Diz que este “ataque” já existe “há uns quatro anos. Mas em Paris é igual, Barcelona também”.

Lidando diariament­e com esta questão, Eduardo sabe os pontos mais sensíveis para quem visita Alfama. “O Panteão, a subida para a Sé, ou da Sé para as Portas do Sol, neste caso o passeio é muito estreito e as pessoas têm de seguir mais juntas. É o paraíso”, adianta.

Problemas com os carteirist­as não tem, recorda mesmo que só por uma vez houve problemas com condutores de tuk-tuk. “Foi nas Portas do Sol, mas foi só dessa vez.”

“Nós sabemos bem quem eles são, as roupas são sempre iguais. Chamamos a polícia, só que eles largam as coisas ou então metem-se num táxi e fogem”, conclui.

Ou disfarçam, como contou um outro comerciant­e ao DN. “Estava com uma cliente aqui à porta e de repente ela percebeu que aquele [e aponta para um homem que passa casualment­e do outro lado da rua] lhe estava a mexer na mala. Quando percebeu isso, ele só lhe disse: ‘I’m joking, I’m joking.’ E fugiu.”

“Nós sabemos bem quem eles são, as roupas são sempre iguais. E até sabemos onde moram. Chamamos a polícia [quando há furtos], mas eles largam as coisas ou então metem-se num táxi e fogem”, conta um condutor de tuk-tuk.

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