Diário de Notícias

Madrugadas de Mindelo

- Escritor cabo-verdiano, Prémio Camões 2018.

Fazia a minha caminhada matinal em direção à Laginha quando reparei numa senhora trajando à moda da costa d’África, um belo e longo vestido de cores variadas e vivas e que vinha ao meu encontro com alguma rapidez e ar espantado. Abrandou os passos ao ficar bastante próxima e pela forma insistente como me olhava vi que queria falar. Bom dia, sorri para ela. Posso andar consigo um bocadinho, acabou por perguntar timidament­e. Ainda era escuro, mas calhou estarmos por baixo de um candeeiro de rua e pude observá-la sem qualquer recato. Não me pareceu agressiva nem trapalhona. Mas tomando o meu silêncio como indício de recusa, acrescento­u quase súplice, Só até ali em cima! Perfeitame­nte, concedi, mas afinal vai para onde?

Tive de perguntar porque ela caminhava exatamente para o lado contrário donde eu ia. Eu estava com uma amiga, explicou em vez de responder, tínhamos estado numa inauguraçã­o, mas perto da hora de ir para casa ela desaparece­u e perdeu-se de mim, acho que foi com um homem... E tu queres ir com outro, pensei, mas estás a perder o teu tempo, mais te valia ires pregar noutra freguesia... Se a tua amiga foi com um homem, disse-lhe, devias tu também ir com outro, assim não estarias nesta aflição. Não, respondeu enfática, não preciso de homem, tenho o meu marido, a minha aflição não é por isso, é porque acabei de ver um rapaz com uma enorme faca na mão aproximar-se de um senhor de idade, encostar-lhe a faca à garganta e tirar-lhe a carteira, o telemóvel e o relógio. E o senhor de idade que fez ele, quis saber. Não fez nada, nem discutiu nem nada, simplesmen­te entregou as coisas que o outro pediu, mas o ladrão viu que fui testemunha, estou com medo dele. Diz-me, se tens marido, que fazes na rua a esta hora. Já te disse, fui com a minha amiga a uma inauguraçã­o. A uma festa, corrigi. Não, não foi festa, foi mesmo uma inauguraçã­o. Uma inauguraçã­o que dura até às cinco da manhã é obra, comentei, mas e o teu marido, ficou em casa? Não, é um italiano, neste momento está em Itália, volta em novembro para nos casarmos de papel passado. Muito bem, disse-lhe, mas se o teu marido está fora, em Itália, que fazes na rua a esta hora? Como, exclamou, sou nova, tenho de me divertir. Não têm filhos, quis saber. Eu tenho cinco, mas não com ele. Que idade tens, perguntei. Tenho 35 anos, o meu primeiro filho tem já 15 anos, o meu primeiro namorado, éramos vizinhos de porta, não saíamos da casa um do outro, e aconteceu. Muito bem, disse-lhe, e ele é pai de todos os teus filhos? Não, só do primeiro.

Mas entretanto caminhávam­os. Tínhamos já passado a entrada do cais acostável, também as instalaçõe­s da MOAVE e quando chegámos à bifurcação que dá para a parte nova, disse-lhe, Eu vou sempre para este lado, até ali ao fundo. Ela olhou e hesitou, o local é relativame­nte isolado, embora seja verdade que sempre aparece uma ou outra pessoa. Não tenhas receio, sorri para ela, de manhã sou completame­nte inofensivo. Ela sorriu também e lá fomos. Que trabalho fazes, perguntei-lhe. Faço penteados, como este que tenho. Tinha reparado no longo e encaracola­do penteado que ela tinha. Tu fizeste esse? Este não, este foi a minha amiga que fez. A amiga que te abandonou? Sim, essa mesma. Deve ter ido trabalhar, sugeri. Ela sorriu agora gaiata, Se chamas aquilo trabalho! Então não é, questionei, são todas formas de ganhar a vida. E tu, não queres arranjar-me um trabalho, perguntou. Infelizmen­te não posso, disse-lhe, como estás a ver, sou careca.

Sentamo-nos num banco de cimento olhando o mar. Quando o dia ficou claro ela sorriu para mim, Já posso ir para casa sozinha, disse.

Eu estava com uma amiga, explicou em vez de responder, tínhamos estado numa inauguraçã­o, mas perto da hora de ir para casa ela desaparece­u, acho que foi com um homem...

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Marginal do Mindelo, Cabo Verde
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Germano Almeida

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