PROFISSÕES ONDE POUCAS MULHERES ENTRAM
Com o tempo e a evolução da sociedade, a situação vai-se alterando, mas ainda existem profissões em que há poucas mulheres, sobretudo em lugares de destaque. Olhámos para algumas e ouvimos pessoas sobre o assunto.
Num protesto recente, muito televisionado, dezenas de mulheres taxistas caminharam na rua de mãos dadas. Olhando as imagens, é de perguntar, baseando-nos num depoimento encontrado numa reportagem publicada neste jornal (assinada por Fernanda Câncio), se algumas delas ouviram de algum colega um pedido jocoso, de mau gosto, para ir coser meias.
Continua a haver profissões nas quais as mulheres pouco entram. Esta, de taxista, é uma delas. Mas há, sabemos, mais, de ramos muito diferentes. Como a matemática. Pensemos que só em 2014 houve uma mulher (Maryam Mirzakhani) a receber, pela primeira vez, a Medalha Fields, o mais significativo prémio na matemática. Há no caso duas histórias. Uma é a circunstância apontada. Outra é o facto de a mulher que conquistou o galardão ser natural de um país que não associamos à igualdade entre mulheres e homens: o Irão.
Em 2017, na altura da morte de Maryam Mirzakhani, à conta de um cancro, o cientista Firouz Michael Naderi comentou que era um
génio que se ia embora, mas também “uma filha”, “uma mãe” e “uma esposa”. O assunto familiar veio à conversa, como acontece quase sempre que se fala de mulher e trabalho. E é nesse tema que toca a matemática portuguesa Patrícia Gonçalves, investigadora e professora no Instituto Superior Técnico, e única pessoa da área da matemática a receber em 2016 uma bolsa de mais de um milhão de euros do Conselho Europeu de Investigação. A bolsa tem como meta apoiar investigadores de topo na Europa, permitindo-lhes formar equipas para desenvolverem projetos.
Patrícia, que tem três filhos (um de 10 meses, outro de 3 anos e outro ainda de 6 anos), admite não ser fácil conciliar a vida familiar e uma atividade que exige viagens frequentes e uma obsessão por aquilo que se investiga. Diversas alunas dos cursos de Matemática, ao hesitarem em ir dar aulas ou em seguir o caminho da investigação, fazem-lhe a pergunta: é possível conciliar uma profissão que exige uma generosa entrega e o gesto de cuidar da descendência? A resposta procura o realismo: “é complicado mas possível”. Para as que desejam ser mães, aponta o reconhecimento legal, feito no Técnico, em relação às mulheres que estão em licença de maternidade. “No semestre após terminada a licença, somos isentadas da obrigação de dar aulas. Só temos de nos concentrar na investigação, o que é ótimo.”
Em todo o caso, esta doutorada pelo Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (Rio de Janeiro), apesar de se encontrar integrada num departamento do Técnico em que encontra várias mulheres, não hesita em apontar a cultura de preconceito como causa importante para não haver mais mulheres a alcançarem um plano de destaque no campeonato da matemática. Não é invulgar ir a uma conferência e ser a única mulher a fazer uma intervenção.
Há quem, como Patrícia Gonçalves, dirija uma orquestra de doutorados e pós-doutorados, e há quem o faça com uma orquestra de música. Sobre o assunto do conhecido desequilíbrio entre homens e mulheres na profissão de maestro, Rui Massena afirma que a sociedade ainda tem de evoluir. Dá um exemplo que revela o atraso: só há 20 anos é que a Orquestra Filarmónica de Viena anunciou que iria aceitar pela primeira vez mulheres no seu elenco. “Antes dizia-se que podiam desestabilizar o grupo.” Ainda em Viena, só em 2019 é que uma mulher (a maestrina norte-americana Marin Alsop) irá assumir pela primeira vez a prestigiada função de diretora artística da Orquestra Sinfónica de Rádio de Viena. Alsop enalteceu a honra com a nomeação mas também partilhou o choque por casos como este ainda terem de ser notícia no século XXI.
E chegamos à escrita – e performance – de humor, território até há pouco tempo pisado sobretudo por homens. Elemento da equipa das manhãs da Antena 3, na qual é autora da rubrica Extremamente Desagradável,e escritora de textos para Herman José, Ana Bola e Maria Rueff, Joana Marques é argumentista na área do humor desde 2007 e nunca sentiu qualquer discriminação, tendo começado logo por trabalhar com mulheres. Não encontra explicação para o dado de haver poucas humoristas: “Não concordo com aquela justificação simplista que reduz tudo a uma questão de sedução, e de os homens precisarem de ser engraçados para conquistar as mulheres, enquanto estas estão apenas ocupadas a ser lindas e a rir do que eles dizem. Felizmente acho que já estamos bem longe disso.”
A também autora do programa e espetáculo Altos e Baixos (com Daniel Leitão) acredita haver menos mulheres do que homens no humor porque ao longo do tempo as mulheres se foram interessando menos por esta área. O desequilíbrio, diz, irá mudar e esbater-se, como vai acontecendo na educação infantil, em que os homens são uma minoria. Ou no grupo de mulheres que vão aos estádios de futebol. “Não acho que, em qualquer destes exemplos, venha a ser 50%/50%, nem que as mulheres ultrapassem o número de homens, nem penso que isso seja sequer necessário ou deva ser imposto, tipo quota.” Recebe mensagens de mulheres que destacam como ponto positivo o facto de ser uma mulher a fazer comédia. Mesmo não considerando isso como bónus, pensa que talvez faça falta um prisma feminino no humor. E quando se refere a prisma feminino não o relaciona com a escolha de temas, mas sim, diz, “com o facto de haver obviamente diferenças entre géneros, por mais que, hoje, haja uma certa vontade de as esbater”. Acrescenta: “Ser pai é diferente de ser mãe, ter sido rapariga na adolescência foi diferente de ser rapaz, etc.”
Cátia Domingues, com formação em Comunicação, já trabalhou como assessora de imprensa, coapresentou o programa radiofónico Prova Oral e fez (e ainda faz) incursões na área da publicidade. Hoje é, entre outras coisas, argumentista e humorista, alimentando com frequência uma página intitulada One Woman Shoe. Ao ser desafiada para comentar o tema “mulheres e humor”, começa por escolher o ângulo da competição. Explica assim o seu ponto: “Há mundos que são tão estatisticamente masculinizados, como é o caso, que nos fazem sentir que competimos entre nós.” Depois de ter passado por esse sentimento, afirma sentir cada vez mais empatia e orgulho para com quem está na mesma embarcação. “Uma vontade imensa de apoiar as mulheres que estão nisto, porque já é tempo de se equilibrarem as coisas.”
Existe também a questão de expectativa por parte dos públicos. Cátia Domingues gosta de fazer humor político e sente que o público, em especial o português, está pouco habituado a ver e a ouvir uma mulher que insista no tema política. “Outra coisa interessante que percebi através da minha experiência é que, do ponto de vista do teu ‘alvo’, ouvir a piada de um homem é mais desvalorizado do que ouvir a mesma piada de uma mulher. Comprovo que há gente que sente realmente como mais humilhante.” Há, resume, trabalho e um desafio a cumprir. “E eu aceitei-o sem pedir a autorização, nem licença, a ninguém.”
Sobre as suas referências no humor, nomeia figuras como Samantha Bee, George Carlin, Bill Hicks, Tina Fey, Woody Allen, Tig Notaro, John Oliver, Joan Rivers, Lizz Winstead, Richard Pryor e Lenny Bruce. Uma escolha eclética, com homens e mulheres dentro, tal como o faz Joana Marques: “Enquanto consumidora interessa-me pouco se é homem ou mulher, desde que tenha graça.” Joana não se sente obrigada a seguir o trabalho de Sarah Silverman e Amy Schumer (ambas comediantes americanas) só por pertencerem ao grupo de “mulheres humoristas”. Revela ter gostado muito do livro Bossy Pants, de Tina Fey, até porque se identificou com o seu percurso enquanto guionista. “E porque, lá está, o livro está escrito com muita piada.” Há uns anos descobriu no YouTube a comediante australiana Celia Pacquola. Teve a sorte de a ver atuar, pouco tempo depois, em Edimburgo. “Foi um bom acaso.”
Na morte da matemática Mirzakhani comentou-se que além do génio ia embora “uma filha”, “uma mãe” e “uma esposa”.