Diário de Notícias

O ódio de uns pelo Brasil dos outros

- Catarina Carvalho

Oque tem sido o Brasil depois do pré-anúncio da eleição de Jair Bolsonaro já dá para ter uma ideia do que vai ser o Brasil depois da quase certa eleição de Jair Bolsonaro. E não, não vamos fazer conversa mole, para usar uma expressão adequada. Falemos de factos. Nesta semana o Brasil foi a morte de Moa do Katendê, um mestre de capoeira com 63 anos, com 12 facadas por uma discussão política.

Foi o atropelame­nto do cineasta Guilherme Daldin por um carro, em Curitiba, enquanto festejava a vitória de um apoiante de Ciro Gomes, quer dizer um adepto do centro. Foi a prisão e o espancamen­to de uma mulher que grafitava numa parede de São Paulo #elenão. Os polícias que a prenderam não a libertaram enquanto ela não disse #elesim. Foi a agressão de um estudante da Universida­de do Paraná, por estar vestido com uma camisa encarnada, de apoiante do PT. Uma jornalista foi esfaqueada e ameaçada de estupro. Uma suástica foi gravada, com lâmina, na barriga de uma jovem: ela tinha um autocolant­e com um arco-íris e mais um #elenão. Um cão que ladrou contra uma caravana de campanha pró-Bolsonaro, na Bahia, foi morto com três tiros por um homem que saiu de um dos carros. Uma semana bastou para acontecer o que era de prever. Do Brasil do sorriso, da tolerância, da paquera fácil – lugares tão comuns como verdadeiro­s – para o Brasil do ódio. Não um ódio com qualquer fundo de razão, mas o mais ancestral dos ódios, ao outro, ao diferente. O que nos une é também o que nos protege do que nos separa. Há anos que isto se investiga na filosofia, na antropolog­ia e noutras ciências sociais.

Nas democracia­s liberais ocidentais, como era o Brasil, há uma maioria de uns e umas franjas de outros. E o que levou Bolsonaro ao lugar de destaque que hoje tem não foi a parte mais radical do seu discurso, a que fala para as franjas. Foi o que nele apela à maioria, a de serem protegidos dos outros. Sorte dele, azar o nosso, há hoje variadas necessidad­es de proteção. Dos deserdados de sempre, abandonado­s por um sistema que protege elites corruptas, às próprias elites que se sentem ameaçadas pelos deserdados e pela violência endémica, passando pela esmifrada classe média.

Tantos para se sentirem “uns” face aos “outros”. Suficiente­s tantos para serem uma grande tribo. Acontece que o tribalismo leva ao preconceit­o, ao ódio. A rápida transforma­ção disso em violência indica que o ódio sempre esteve lá, atrás do sorriso, como pressão em panela antes de explodir. Um dos alvos da violência a seguir à primeira volta foram os gays, como detetou o correspond­ente do DN no Brasil, João Almeida Moreira. Em reportagem falou com os que se sentem ameaçados e com vontade de emigrar para Portugal. “Parece que os preconceit­uosos é que estavam escondidos no armário”, dizia-lhe um advogado de São Paulo. Regressamo­s a este assunto hoje porque era deste conflito que falava a capa da semana passada do DN, muito criticada nas redes sociais. Nessa altura era latente, agora é evidente. Aquela foto que publicámos era a foto de uma manifestaç­ão anti-Bolsonaro pelo amor livre. Era uma manifestaç­ão política, onde alguém colocou um autocolant­e no rabo para ser fotografad­o. Uma pessoa – homem ou mulher, não se sabe nem pela foto nem pela manifestaç­ão, que uniu gays, mulheres, homens e todas as variantes sexuais – participou numa manifestaç­ão e colocou sobre as suas meias de rede um autocolant­e. Politizou-as, e às suas nádegas.

O fotojornal­ista da Reuters fez o seu trabalho: fotografou. O rabo, as meias, o autocolant­e anti-Bolsonaro. Aquela câmara foi de repórter – um profission­al enviado fotografou o que estava a acontecer e a sua imagem disse o que acontecia. Aquele jornalista viu e contou – a divisão e o protesto. O DN escolheu a foto e publicou o título: “Brasil dividido”. O Brasil dos outros contra o Brasil de uns. Tão atual na semana passada como hoje. Quando houver outras nádegas igualmente políticas, cá estaremos para dar notícia delas.

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Bolsonaro não conseguiu o que conseguiu por falar para as franjas. Foi a falar para a maioria.
 ??  ?? O repórter fotografou um rabo que era uma manifestaç­ão política, no Brasil.
O repórter fotografou um rabo que era uma manifestaç­ão política, no Brasil.
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Uma das agressões da semana passada: cruz suástica marcada na barriga de uma jovem.
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