Os eleitores querem mesmo fascistas
No Brasil, os níveis de pobreza extrema, de uma desigualdade sem paralelo, de iliteracia, de influência de organizações tão sinistras como a IURD, de fragilidade das instituições, de intervenção direta dos principais media no processo político, criam um cocktail sempre pronto a explodir. Podia-se dizer o mesmo do resto da América Latina. Médici, Castro, Somoza, Videla, Maduro, Pinochet e mais um nunca acabar de figuras do género são comuns nesse continente.
Por esta altura, já foram tentadas todas as explicações para este fenómeno. É por causa da corrupção patrocinada pelo PT, é o crime, é a iliteracia, são os media, é a implosão das instituições pós-Lava-Jato, é o poder judicial com um olhar enviesado. Talvez convenha lembrar que não houve uma única razão que não pudesse ser utilizada noutras alturas da história recente do Brasil. Como se a corrupção tivesse começado com o PT, ou a insegurança, a desigualdade ou a iliteracia fossem fenómenos novos.
Houve, no entanto, um argumento que me chamou a atenção.
Um segmento da opinião (gente disposta a defender qualquer crápula se esse disser que é contra a esquerda) que disfarçou com dificuldade o entusiasmo com Bolsonaro, os desculpistas, saiu-se com este argumento.
Jair Bolsonaro não é xenófobo, racista, misógino e homofóbico; também não defende a pena de morte, nem a prisão perpétua, nem a tortura, nem a violência policial. Nem pensar. Só proclama tudo isto para ganhar eleições, mas depois não implementa nada disso. No caso do brasileiro, como dizia um dos desculpistas cá do burgo, o seu programa “é uma rotineira lista de opções conservadoras e liberais”. Não sei o que me assusta mais neste discurso. Por um lado, dizer que este tipo de personagens não aplica exatamente o que diz defender só pode ser ignorância ou má-fé. A Hungria e Polónia são aqui ao lado.
Por outro, se dermos como válido este raciocínio, temos de concluir que as pessoas querem mesmo aquilo que os Bolsonaros desta vida prometem, ou seja, o fim de valores e direitos que tínhamos como irreversíveis, a morte do Estado de direito ou, no mínimo, uma espécie de democracia iliberal. O que perturba é que parece ser exatamente isso que as pessoas querem. Seria até passar um extraordinário atestado de estupidez aos eleitores pensar que eles não querem o que lhes é prometido de forma tão clara.
Não há como pensar que as pessoas dão muito menos importância a valores que julgávamos fundamentais do que realmente dão, que o amor pela democracia e pelo Estado direito é algo de muito ténue. Veem soluções para os seus problemas, sejam de segurança, de corrupção ou económicos, fora de um contexto democrático.
Pode-se argumentar que as pessoas são vulneráveis às redes sociais, à influência dos órgãos de comunicação social, às fake news. Será tudo verdade, mas no momento em que desprezamos o voto popular estamos também nós a desprezar a democracia, estamos a fazer exatamente o que acusamos os que manipulam a opinião pública de fazer.
Mas se a maioria das democracias da América Latina têm falhado rotundamente perante os cidadãos – sabendo que nenhuma ditadura fez melhor, deixando-me cair numa comparação que em si já é uma derrota –, não podemos dizer o mesmo das europeias. São incomparáveis os níveis de prosperidade, segurança, direitos, igualdade, corrupção, funcionamento das instituições, do Brasil com os Estados europeus.
E, no entanto, os Bolsonaros crescem como cogumelos e já tomaram mesmo países. A Hungria já não é uma democracia liberal, a Polónia está num caminho muito acelerado na mesma direção e a Itália tem Salvini no governo, a França tem 35% dos seus eleitores fiéis a Le Pen e é raro o país europeu em que esta bactéria não esteja em crescimento. É no continente da prosperidade, naquele que se considera o farol dos valores da sociedade ocidental, que a tal bactéria se propaga com evidentes sinais de franca expansão.
É provável que a luta de quem acredita na democracia liberal tenha de se concentrar na divulgação da verdade, no combate sem tréguas contra a mentira, no esclarecimento de que nunca as soluções ditatoriais e o desrespeito pelas minorias foram solução para qualquer tipo de problema, seja social ou económico. Mas antes de tudo é preciso perceber exatamente o que as pessoas querem. Olhar para as pessoas, chamar-lhes ignorantes e buscar explicações através dos nossos olhos nunca será uma boa solução.
Seria até passar um extraordinário atestado de estupidez aos eleitores pensar que eles não querem o que lhes é prometido de forma tão clara.