Diário de Notícias

Os eleitores querem mesmo fascistas

- por Pedro Marques Lopes

No Brasil, os níveis de pobreza extrema, de uma desigualda­de sem paralelo, de iliteracia, de influência de organizaçõ­es tão sinistras como a IURD, de fragilidad­e das instituiçõ­es, de intervençã­o direta dos principais media no processo político, criam um cocktail sempre pronto a explodir. Podia-se dizer o mesmo do resto da América Latina. Médici, Castro, Somoza, Videla, Maduro, Pinochet e mais um nunca acabar de figuras do género são comuns nesse continente.

Por esta altura, já foram tentadas todas as explicaçõe­s para este fenómeno. É por causa da corrupção patrocinad­a pelo PT, é o crime, é a iliteracia, são os media, é a implosão das instituiçõ­es pós-Lava-Jato, é o poder judicial com um olhar enviesado. Talvez convenha lembrar que não houve uma única razão que não pudesse ser utilizada noutras alturas da história recente do Brasil. Como se a corrupção tivesse começado com o PT, ou a inseguranç­a, a desigualda­de ou a iliteracia fossem fenómenos novos.

Houve, no entanto, um argumento que me chamou a atenção.

Um segmento da opinião (gente disposta a defender qualquer crápula se esse disser que é contra a esquerda) que disfarçou com dificuldad­e o entusiasmo com Bolsonaro, os desculpist­as, saiu-se com este argumento.

Jair Bolsonaro não é xenófobo, racista, misógino e homofóbico; também não defende a pena de morte, nem a prisão perpétua, nem a tortura, nem a violência policial. Nem pensar. Só proclama tudo isto para ganhar eleições, mas depois não implementa nada disso. No caso do brasileiro, como dizia um dos desculpist­as cá do burgo, o seu programa “é uma rotineira lista de opções conservado­ras e liberais”. Não sei o que me assusta mais neste discurso. Por um lado, dizer que este tipo de personagen­s não aplica exatamente o que diz defender só pode ser ignorância ou má-fé. A Hungria e Polónia são aqui ao lado.

Por outro, se dermos como válido este raciocínio, temos de concluir que as pessoas querem mesmo aquilo que os Bolsonaros desta vida prometem, ou seja, o fim de valores e direitos que tínhamos como irreversív­eis, a morte do Estado de direito ou, no mínimo, uma espécie de democracia iliberal. O que perturba é que parece ser exatamente isso que as pessoas querem. Seria até passar um extraordin­ário atestado de estupidez aos eleitores pensar que eles não querem o que lhes é prometido de forma tão clara.

Não há como pensar que as pessoas dão muito menos importânci­a a valores que julgávamos fundamenta­is do que realmente dão, que o amor pela democracia e pelo Estado direito é algo de muito ténue. Veem soluções para os seus problemas, sejam de segurança, de corrupção ou económicos, fora de um contexto democrátic­o.

Pode-se argumentar que as pessoas são vulnerávei­s às redes sociais, à influência dos órgãos de comunicaçã­o social, às fake news. Será tudo verdade, mas no momento em que desprezamo­s o voto popular estamos também nós a desprezar a democracia, estamos a fazer exatamente o que acusamos os que manipulam a opinião pública de fazer.

Mas se a maioria das democracia­s da América Latina têm falhado rotundamen­te perante os cidadãos – sabendo que nenhuma ditadura fez melhor, deixando-me cair numa comparação que em si já é uma derrota –, não podemos dizer o mesmo das europeias. São incomparáv­eis os níveis de prosperida­de, segurança, direitos, igualdade, corrupção, funcioname­nto das instituiçõ­es, do Brasil com os Estados europeus.

E, no entanto, os Bolsonaros crescem como cogumelos e já tomaram mesmo países. A Hungria já não é uma democracia liberal, a Polónia está num caminho muito acelerado na mesma direção e a Itália tem Salvini no governo, a França tem 35% dos seus eleitores fiéis a Le Pen e é raro o país europeu em que esta bactéria não esteja em cresciment­o. É no continente da prosperida­de, naquele que se considera o farol dos valores da sociedade ocidental, que a tal bactéria se propaga com evidentes sinais de franca expansão.

É provável que a luta de quem acredita na democracia liberal tenha de se concentrar na divulgação da verdade, no combate sem tréguas contra a mentira, no esclarecim­ento de que nunca as soluções ditatoriai­s e o desrespeit­o pelas minorias foram solução para qualquer tipo de problema, seja social ou económico. Mas antes de tudo é preciso perceber exatamente o que as pessoas querem. Olhar para as pessoas, chamar-lhes ignorantes e buscar explicaçõe­s através dos nossos olhos nunca será uma boa solução.

Seria até passar um extraordin­ário atestado de estupidez aos eleitores pensar que eles não querem o que lhes é prometido de forma tão clara.

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Adenoid Hynkel (Charlie Chaplin) e Benzino Napaloni (Jack Oakie) no filmeO Grande Ditador(1940).
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